Ressaca moral, não estamos nada bem
O dia 25 começou de uma forma inesperada, porém muito bem conhecida: ressaca. Bem conhecido por motivos óbvios e nem que eu quisesse daria para enumerar as tantas vezes que já aconteceram ao longo desses quase 30 anos de vida. Inesperado porque eu tive um blackout e nem de longe eu imaginava começar o dia de ressaca, muito menos sem lembrar da maior parte do que aconteceu ao longo do dia anterior, depois das inúmeras vezes que aconteceram ao longo desses quase 30 anos de vida.
O dia 25 foi dia de ressaca e essa ressaca foi moral. Meu corpo até que estava bem, só tomei engov, dorflex e alguma aspirina do fundo da última gaveta do balcão da recepção. Minha cabeça, por outro lado e de forma alguma inesperada, contorcia de raiva, raiva do apagão, raiva de mim mesmo, raiva do governo, raiva do mundo - nada que seja muito diferente dos dias normais, afinal, eu acordo e vou dormir com raiva. Tem como ser diferente? Sinto que se eu acordasse e fosse dormir feliz nesses dias seria apenas mais um estúpido babaca que eu não quero ser. Pego meu celular como de costume para ler que ultrapassamos as 3 mil mortes diárias por covid no país. Acordar e dormir feliz no Brasil governado pelo genocida Bolsonaro que tantas pessoas a minha volta, meus parentes, meus colegas e até amigos ajudaram a colocar no poder me parece uma tarefa absurdamente implausível.
Lembro da primeira cerveja que tomei. Devia ter lembrado também que meus remédios aumentaram recentemente e que eu não confio no atual psiquiatra que jura que os comprimidos não têm efeitos colaterais. HA!
Quando eu comecei com o Lexapro 3 anos atrás, a Clézinha dançava em minha direção com um copo cheio de água. A gente tinha esse trato. Se eu não tomasse água, duas cervejas me derrubariam, viraria um bêbado insolente, provavelmente pararia em lugares questionáveis da vila madalena e pinheiros, ás vezes no centro de São Paulo - no dia seguinte teria a galeria cheia de fotos comprovando que eu estava em lugares que eu não acreditaria ter pisado. Foi assim que eu parei na hypada Tokyo no centro duas vezes - não lembro de nenhuma das duas, só acredito nas testemunhas. Foi graças a esse trato com a Clé que eu pude continuar frequentando os Happy Hours da Wieden+Kennedy todas as quinta-feiras - e quem trabalhou comigo nesse período sabe como eu considerava as noites de quinta-feira sagradas. Pena que eu não tinha a Clé a caminho da prainha comigo naquele dia.
O objetivo era ficar de boa e não deixar o peso de não ter hóspedes, não ter turismo, não ter dinheiro para pagar as contas, não ter a porra de um governo funcional sobrecarregar, e simplesmente aproveitar o paraíso para relaxar ao menos por um dia. O resultado são os vários flashs ao longo do dia, sei que me diverti bastante, pelo menos até começar a atropeçar, perder chinelo e dar trabalho. De lá voltamos para a pousada e de lá para o beach house. Me garantiram que eu não fiz nada demais ou vergonhoso enquanto bêbado, que inclusive conversei bastante e se espantaram de eu não lembrar das conversas.
Não lembro. Não lembrava. Acordei de ressaca. Flashs. Eita, tive apagão. Que merda.
"Jesus, a cidade vai fechar amanhã, quarentena vem aí. 10 dias."
Tudo tudo tudo que eu mais queria para o brasileiro era um lockdown decente e um plano razoável para garantir a saúde da população - longe de ser o megaferiado em São Paulo e Rio de Janeiro com péssimas restrições e que só afetam ainda mais negativamente o turismo, nosso ganha pão. O peso da ressaca moral e o peso de ser brasileiro nesse governo de merda que tantos conhecidos ajudaram a colocar no poder brigando por espaço e parede para bater na minha cabeça.
Levantei, andei pela pousada atrás de água com o olhar pouco receptivo para todos indicando não querer papo com ninguém. Voltei para o quarto 2, o que está com o ar-condicionado quebrado e tem um lençol de solteiro esticado no colchão de casal. E lá fiquei. A vontade era de não sair tão cedo, de passar uma quarentena inteira ali, mesmo que desconfortável, o importante era não ter contato com ninguém.
Ok ok. Eu estava de ressaca e passei o dia na cama. Serotonina lá embaixo. Não precisaria de nenhum expert para me explicar o quanto o álcool em excesso e a falta de água somado ao aumento na dosagem do Frisium (atual remédio muito mais barato que o Lexapro) que regula meus hormônios retornaram desequilibrando os mesmos. Contudo, era mais do que isso, depois de tantos anos de experiência, sei muito bem identificar os sintomas de quando os parafusos da minha cabeça não estão muito bem regulados. Mais do que ressaca, mais do que hormônios desequilibrados. Pego meu celular como de costume para ler que ultrapassamos as 3 mil mortes diárias por covid no país. Eu tive e eu tenho é raiva. Minha cabeça contorcia, raiva do apagão, raiva de mim mesmo, raiva do governo, raiva do mundo - nada que seja muito diferente dos dias normais, afinal, eu acordo e vou dormir com raiva. Como vocês conseguem acordar e dormir felizes sabendo que mais de 300 mil pessoas morreram por causa de uma elegida incompetência?
Se eu não dependesse do turismo, não sei exatamente onde estaria, mas certamente evitaria contato com as pessoas. Chega até a ser um pouco desesperador de engraçado esse contraste, enquanto todos meus amigos paulistanos que mantém uma quarentena assídua há um ano estão desesperados por contato físico, por pessoas ao redor, por aglomerações, tudo que eu mais queria era me isolar por dias no meio das montanhas, algum lugar frio e remoto, e não ter contato com ninguém. Queria focar em estudar, ler livros e escrever. Ver filmes e conhecer bandas novas de sonoridade duvidosa. Sozinho, completamente sozinho. As escolhas lá de trás me trouxeram para um momento da vida que é absolutamente inviável qualquer isolamento, hoje eu dependo da interação com as pessoas, e quanto mais elas decidem que não é tão errado dar uma escapulida para a praia, melhor para mim que vou conseguir garantir o aluguel do mês e pagar os funcionários que também dependem disso.
Como esse não é o caso no momento - não há nada que eu possa fazer para conseguir o dinheiro para todas as contas e nem para garantir uma comida saborosa para todos que estão aqui - eu não saí do quarto 2. Lá fiquei na minha improvisada quarentena, aproveitando o sabor de não interagir por longas horas.
No primeiro dia, o 25 que começou de forma inesperada, perdi a aula de yoga, mas maratonei Lovecraft Country, fui dormir bem tarde e satisfeito por ter aproveitado meu dia simplesmente assistindo e aproveitando uma boa história.
No segundo dia, comecei a desenhar e planejar como utilizar bem meu tempo nesses 10 dias de quarentena que começariam. E é bem aí que reside um grande conflito da cabeça desse que vos escreve: ao mesmo tempo que eu quero ter um mínimo de controle e sei que um bom planejamento é importante para a garantia de sucesso e que, acima de tudo, ajuda a controlar a ansiedade, também sei que é importante deixar os passos em aberto, que viver de mãos dadas com o imprevisível traz experiências enriquecedoras e únicas, boas histórias para contar. Contudo, porém, entretanto, eu pendo mais para esse lado da imprevisibilidade e de apenas deixa rolar quando estou disposto a viver de forma vulnerável, quando eu me coloco na situação de vulnerabilidade, já se isto está além de mim, eu surto, preciso dos pés de volta ao chão e crio uma dificuldade esmagadora para identificar que certas situações que eu vivo continuam sendo únicas e valorosas. Por exemplo: minha vida agora com contrato e contas para pagar versus viajar por aí de carona. Com a segunda opção eu estaria totalmente OK com as minhas situações de vulnerabilidade e abraçaria todas as experiências que me surgissem de bom grado, o que não é o caso. Me cobrem no futuro para explanar melhor essa contradição, um parágrafo é pouco para tentar me debruçar nessas minhas filosofias. O lance é que, conforme eu mais planejava e desenhava como meus dias deveriam ser durante essa segunda quarentena em Arraial do Cabo e desta vez com um negócio próprio, uma pousada com mais de 1km quadrado, mais e mais ideias eu ia tendo e vontades diferentes de como aproveitar estes dias. Não demorou muito para eu me pegar ansioso, bem ansioso. Eu estava fazendo um planejamento a fim de manter a ansiedade controlada e a cabeça sã, mas minha cabeça pipocou de ideias e mais ideias e mais ideias e por fim eu estava ansioso. Contraditório, não?
Não vou expôr aqui as ideias que tive, até porque isso pré-determinaria uma frustração futura causada pelas minhas próprias palavras a partir do momento que escrevesse e fosse publicado. Deixei-as de lado. Voltei às histórias: assisti Promising Young Woman e Nomadland. Queria escrever a respeito de cada história que consumo, mas se só de pensar nisso já consome meu tempo, colocar em prática se torna inviável com o tanto de interrupções e necessidades no ambiente que me encontro. Que droga. Vou tomar banho para relaxar, quem sabe dormir. PÁ. Outra ideia. Viajei na história que minha cabeça criava enquanto caía água na cabeça. Eu precisava sentar e dar nome aos personagens, entender o porquê de seus conflitos, aonde eu gostaria de chegar se contasse aquela história que me veio à cabeça durante o banho para relaxar. Eu queria escrever, sentar e escrever. Mas essa não é uma opção, isso não vai pagar minhas contas, logo, a história do menino que virou estrela morreu em algumas anotações e não verá luz do dia alguma pois uma hora vai simplesmente deixar de fazer sentido encaixar as peças de volta que me levariam a retomar a contar essa história.
No terceiro dia, vi filme nenhum, aproveitei o silêncio e a falta de movimento na pousada para colocar as coisas em ordem, faxinamos a casinha, tentei dar um trato na piscina e, por fim, corri de volta para o quarto conforme percebia novas agitações de pessoas chegando. Novamente, a última coisa que eu queria era interação. Tentei dar continuidade a algumas das ideias do dia anterior, sobre como elas poderiam funcionar a longo prazo. Eu precisava estudar algumas plataformas novas para executá-las, e lá fui eu, até de noite, estudando e estudando, até ser interrompido.
Yuri chegou abrindo a porta do quarto que eu esqueci destrancada. "Jesus não sai do quarto há 3 dias", foi o que lhe disseram. Sim, de certa forma, mas não porque ainda estava de ressaca me recuperando de como acordei no dia 25. Eu só queria ficar sozinho. Quando eu teria essa oportunidade novamente na vida trabalhando com turismo e dividindo espaço com tanta gente? Eu só queria ficar sozinho. Sem interrupções, apenas meus pensamentos, minhas ideias, traçar como colocá-las em prática, quem sabe alguma não me desse dinheiro para eu não ter que depender totalmente do atual lifestyle que só parece que é absurdamente mais incrível do que o mundo corporativo que eu vivia antes.
"Quer que eu vá embora?"
"Não, agora você já tá aqui, fica ae"
Conversamos por um tempo, mais uma entrou no quarto. A conversa foi pra um assunto que eu não tenho a menor das experiências: relacionamentos. Chega, falar de monogamia e poliamor é chato pra caramba.
"gente, eu acho esse assunto para um caralho, não aguento mais"
Enfim, sozinho novamente.
E não, não estamos nada bem. Se você tá bem, provavelmente não tá no mesmo Brasil que eu tô.