Meu gigante e imponente avô
Quando eu era criança, o homem do saco apareceu, literalmente, e quis me levar.
Eu estava jogando videogame, como de costume, na sala da casa da minha tia, que era ligada à casa dos meus avós, no outro lado do quarteirão. A sala era acessível pela garagem, que não tinha portão, em frente a uma rua de terra e ao cemitério de Conchas, beirando o mato.
Entre a troca de fases no Super Mario All-Stars, quando a tela ficava escura, eu enxerguei na TV de tubo o reflexo daquele andarilho que passaria anos aflorando em minha cabeça.
Minha mente infantil pode ter adulterado alguns fatos, mas eu me lembro de ser arrastado e finalmente gritar quando me machuquei com algum impacto.
Minha tia fez escândalo, meus avós apareceram. Acho que tinha uma vassoura girando na mão da minha vó. Mas é do meu vô afugentando o sequestrador que eu melhor lembro. Não exatamente de sua fisionomia ou de como ele se moveu para me socorrer, mas sim do sentimento de proteção, de como ele era forte e imponente.
Eu sempre enxerguei meu vô como a figura máxima de respeito da família. Sentia um enorme orgulho dele e de como as pessoas o tratavam, principalmente a irmandade da igreja, onde eu o via numa alta posição, respeitado, querido por todos, temente e abençoado por Deus.
Às vezes eu sonhava com uma enorme escada reluzente em espiral, no meio de uma vastidão escura e estrelada. E ele subia calmamente aqueles degraus como um gigante. Ora eu o acompanhava, ora eu estava apenas observando.
Ah, vô, eu queria tanto que o senhor se orgulhasse de mim.
Um dos motivos por eu ler a Bíblia por vontade própria durante as férias, ainda que eu mal-entendesse por ser tão diferente dos livros que eu estava acostumado. E um dos motivos por eu invejar as crianças que falavam em línguas, as quais atraíam a atenção dos adultos.
Te ver feliz por eu estar aprendendo a tocar violino me deixava feliz. E embora eu não me arrependa de ter desistido de tocar na igreja, me doía saber que eu não te traria essa felicidade.
Acho que meu vô era o que melhor compreendia o que se passava no coração de nós crianças.
Certa vez, uma leitoa deitou todo seu peso sobre um dos recém-nascidos. Eu e minha irmã nos indignamos por ela se recusar a cuidar daquela cria, ignorando completamente o porquinho fragilizado. Ignoramos as ordens e levamos o porquinho escondido pra casa, colocamos ele dentro de uma caixa forrada e escondemos debaixo da cama. Acreditávamos veemente que poderíamos torná-lo forte e então levá-lo de volta ao chiqueiro.
Obviamente que descobriram o plano. Contudo, contrariando minha vó, meu vô nos ajudou a cuidar do porquinho, mesmo sabendo que ele estava fadado a morte. Aquilo significou muito pra mim.
Ele já pegou no pé do meu tio para fazer uma casa na árvore e, assim, a gente parar de pregar tábuas nos galhos em cima do chiqueiro ou nas raízes debaixo do antigo viveiro. A casa na árvore nunca nem chegou perto de ser feita, mas com suas próprias mãos, com aqueles dois dedos quase pela metade, fez balanços usando cordas entrelaçadas no forro da garagem – que sempre dava em briga de irmãos. Como sempre também acontecia depois de horas brincando na lama debaixo de chuva, fazendo represas e o caminho dos carrinhos nos montes de terra, ou fazendo foguetes com um monte de caixas e robôs com as latinhas que minha vó juntava. Em todas vezes, ele reclamava com a minha vó das crianças briguentas (era outra palavra muito melhor que ele usava e eu não consigo lembrar) que nos éramos. Coitado, mal sabia da bagunça que seria com os bisnetos.
É uma pena que a gente cresce e naturalmente as relações se tornam complicadas. Minha aborrecência chegou trazendo doses cavalares de repulsa e, por um breve período, sentia a necessidade de desafiá-lo, pois ele passara a representar tudo o que eu estava começando a odiar.
Em minha primeira tentativa de deixar o cabelo crescer, eram constantes os comentários desgostosos de que eu devia deixar crescer os cabelos do “cuzinho vosso” HAHAHA Ou que lá nesse orifício que eu deveria colocar piercing, alargador ou fazer uma tatuagem. Meu véio só estava seguindo o fluxo de uma geração, como tantos outros véios cristãos por aí. E eu estava seguindo o fluxo da imbecilidade que paira sobre nossas cabeças quando ainda não entendemos que porra de raios tá acontecendo.
Só que eu tinha tanto ódio por dentro que o que no início me constrangia e envergonhava passou a ser combustível para ser inconveniente e utilizar a reação alheia de termômetro. Eu me odiava e refletia nos outros, inclusive em meu avô. Que babaca, eu. Me desculpa, vô.
Logo fui aprendendo a aceitar minhas diferenças e a como lidar com minhas angústias sem respingar nos que amo e que me amam. Percebi que existem palavras que não valem a pena ser ditas e que a omissão é crucial em determinados casos.
Decidi que jamais desrespeitaria meu vô novamente e que minha forma de enxergar a vida não seria totalmente compartilhada. Enquanto ele estivesse vivo, estava tudo bem aparentar ser uma pessoa que eu não era. No fim das contas, isso nem se tornou uma preocupação. O tempo cuidou de tudo.
Antes de minha mudança para São Paulo, meu vô se tornou mais tolerável, e eu também. Nunca mais ouvi uma palavra sequer sair de sua boca para recriminar meus atos. Quase como se tivesse percebido que determinado comportamento meu não era passageiro, e que eu era suficientemente inteligente para saber o que estava fazendo – como cheguei a ouvir.
Ah, vô, quantas vezes ouvi que eu era “nosso largatão”, de tanto que eu comia ovo. “Zinha, vai mostrar pra ele o que você pegou no galinheiro”. Isso quando não me chamava de “Lia” (!). Alguns avós costumam chamar os nomes de todos os primos até acertar o nosso, pelo menos os meus. E quando o “Liel” travava, de alguma forma encurtava pro “Lia”.
Ô, vô, eu nunca mais vou te escutar me chamando?
Até parece que você esperou pra se despedir de mim, que não frequento o interior assiduamente há tantos anos. Toda vez que eu me despedia, dizia “eu te amo” com um abraço forte, receoso de quanto tempo levaria para aparecer novamente. E semana passada, eu senti tanto na despedida, que precisei repetir uma segunda vez que te amava antes de partir – sem saber que era a última despedida.
Meu vô se foi. E quando eu sonhar, verei ele subindo pela última vez aquela enorme escada reluzente em espiral, no meio de uma vastidão escura e estrelada. Faço dessas palavras o meu luto, grafada com a dor em cada lágrima de quem sentirá falta de ter a mesma proteção de quando era criança. Carrego no coração, esse gigante tão forte e imponente que foi meu avô.