Eu sou fodido da cabeça
Eu sou fodido.
Eu sou fodido da cabeça.
E não é de agora.
Vou chegar aos trinta anos e não consigo me recordar de algum momento nesse tempo todo que eu não estava fodido da cabeça.
Talvez quando eu fosse criança, bem criança, tipo, sei lá, uns 8 anos. Quer dizer, antes disso, pois acabo de me lembrar que meu aniversário de 8 anos foi temático 101 dálmatas, meu primeiro e único aniversário temático na infância, com algumas bexigas vermelhas e pretas, enfeites, dálmatas e presentes. Tudo bancado pelos meus tios, talvez todos os presentes fossem deles.
Acho que eles só fizeram isso porque se incomodaram comigo, já que passei o último ano colecionando figurinhas dos bananas de pijamas — aquelas que vinham nos chicletes que meus tios vendiam no trailer da praça central daquela minúscula cidade de 14 mil habitantes. Colei as figurinhas em volta de uma grande mesa para que, quando ela estivesse forrada, eu pudesse ter uma festa temática igual à que vi numa foto antiga da minha irmã mais velha quando fez 5 anos e teve uma da Cinderela.
E o porquê de eu saber que nessa idade eu já era fodido da cabeça é por passar o dia trancado no quarto, enquanto minha família montava a sala para cantar parabéns como se eu não soubesse de nada. Ansiei pela noite que, quando enfim chegou, eu não estava mais feliz. Meu pai não estava lá. E nenhum amigo. Eu nem tinha amigos mesmo, exceto um imaginário, com quem não trocávamos muita ideia, mas ele fazia coisas e eu observava, tipo me seguir quando eu estava no carro, surfando em cima dos fios de energia. Meu amigo imaginário também não estava lá e, se tivesse, teria visto um garoto com um sorriso enorme no rosto para as fotos. Tomei todo o cuidado do mundo para que achassem que aquela era a criança mais feliz que existia, simplesmente para não desapontar ninguém depois de todo o esforço que fizeram.
Mas como estar feliz numa festa de aniversário tão aguardada quando você se dá conta de que tem algo muito errado acontecendo?
Ao menos, nas fotos, estou feliz, devo ter aprendido ali a fingir tão bem — habilidade essa que perdi nos últimos anos, infelizmente ou não.
Foi só uns 4 anos depois que meu pai foi embora para eu nunca mais o ver e entendo os traumas relacionados a isso. Mas o que aconteceu antes?
Digo, penso, em que momento exatamente as coisas cagaram tudo e surgiu essa faísca na minha cabeça, me fazendo acreditar que não valia a pena estar vivo? Será que esse momento ocorre parecido e pode ser evitado na cabeça de toda criança suicida?
Afinal, minha primeira tentativa de suicídio aconteceu totalmente alheia aos traumas relacionados ao meu pai. Estava muito mais atrelada à igreja e à sexualidade, eu "só" queria virar um anjo e ir para o céu ao invés de ser diferente, digo, viado, e estar fadado ao inferno.
Tá, pera, desviei demais do pensamento inicial dessa escrita.
Eu sou fodido da cabeça e tentava lembrar de algum momento que eu assim não fosse, certo?
Bem, antes dos traumas sexuais e familiares, eu queria ser órfão — porque parecia muito legal a ideia de morar num orfanato e ter amigos como nas Chiquititas. Até aí, nada de mais, né? Quanta criança não pensou isso, vivendo os anos 90.
Mas foi a partir dos traumas, então, que eu caí na derrocada em busca de alívio. Será?
A automutilação veio antes de eu me afundar nas drogas e tornar a autodestruição uma constante. E as sequelas certamente aprofundaram os sintomas de se estar fodido da cabeça.
Eu sou fodido da cabeça e, estando mais maduro e consciente disso, consigo, às vezes, encontrar formas de driblar meus próprios demônios sem me sujeitar a toda sujeira e humilhação que eu mesmo já causei.
O fardo se torna menos pesado nos momentos de glória e preservação. Jamais extirpado de vez. Sempre tem sua hora de voltar e uma nova busca de alívio recomeça — exigindo que eu me expresse e faça a arte que posso e sou capaz no momento para não cair nos velhos erros que piorariam estar fodido da cabeça. Como agora. Expondo e expressando minha dor interna por meias-palavras — e garantindo que boa parte das pessoas estarão bloqueadas dessa visualização, por ser melhor para essas pessoas não passarem de meias verdades… E assim repetindo a arte de aparentar o que não é, que aprendi lá no aniversário de 8 anos.
Eu sou fodido da cabeça, e não é de agora.
E nessa batalha constante até então venho vencendo, o que não posso deixar jamais de esquecer.
PS: EU TO RELATIVAMENTE BEM, NAO TO SUICIDA, ACABEI DE TOMAR MEU ATUAL COMPRIMIDINHO TARJA PRETA PARA DORMIR E SÓ PRECISAVA COLOCAR PRA FORA AS PALAVRAS QUE SUFOCAM QUEM GOSTA DE ESCREVER. NAO PRECISA ME MANDAR MENSAGEM FALANDO QUE VAI FICAR TUDO BEM OU PERGUNTANDO COMO EU TÔ. PORQUE COMO EU TÔ EU JÁ RESPONDO AGORA: FODIDO DA CABEÇA, COMO SEMPRE FUI E COMO TANTOS SÃO, E BUSCANDO UM ALÍVIO E EXPRESSÃO MENOS AUTODESTRUTITVO E SEM PRECISAR DESABAFAR COM UM AMIGO IMAGINÁRIO QUE NÃO ME RESPONDIA NEM QUANDO CRIANÇA.
