5 anos
Caralho, 5 anos se passaram. 5 anos.
Não é um pouco assustador lembrar de tudo que nos aconteceu nesse tempo? Quando começou, eu nem sequer te conhecia. Lembra? Você era estranha e nem um pouco receptiva. Lembro de atravessar todos aqueles bairros naquele trem que me esmagava de tão lotado para te conhecer melhor.
Lembra das loucuras na Lapa? Acho que foi ali que a nossa relação realmente começou. Você me jogou na cara algumas escolhas erradas do passado e eu me tornei mais forte ao negar aceitar as facilidades que você me empurrava. Mas não nego que me sentia feliz toda vez que brindávamos com as prostitutas, os vagabundos bêbados, os moleques da estação e as travestis padezeiras. Dias insanos, acabaram tão rápido, não é?
Um dos vizinhos ficou muito feliz com a nossa despedida daquele lugar. Mas eu não fiquei feliz com aquela noite mal dormida na rodoviária, precisei tanto de ajuda e tudo que você me fez naquele momento foi deixar eu sentir o frio. Dias ruins, foram tantos, não é?
Enquanto você me dava um gelo, eu tentava entender como fui parar ali. Lembrei. Chovia perto da faculdade em que eu sonhava estudar depois de mais uma bolsa conquistada. Mais uma bolsa perdida. Eu segurava o celular com a mão tremendo, “não vou voltar”, e uma lágrima se confundia com a água que caia. Dá para acreditar que era uma das última lágrimas que escorreriam do meu olho durante os anos seguintes? É, lembrei. Bastou pra manter o queixo erguido. E valeu a pena, não é mesmo?
Foi no mesmo mês em que eu me escondi no cinema do shopping. Preferi assistir X-men do que enfrentar a realidade, essa última é tão difícil às vezes. Foi no mesmo mês em que eu pedi demissão porque havia surtado momentaneamente. O que eu estava fazendo? E ainda assim, deu certo. Comemoramos juntos quando eu finalmente soube que entraria para uma faculdade. Naquele momento eu já te conhecia melhor e estava mais preparado a lidar com seu pulso firme e gênio forte. Pensando nisso, dou risada ao lembrar daquela correria e de todos os atos ilícitos que me permitiram estudar. Céus, já estou formado há meses e ninguém deve suspeitar. Que diferença faria agora, não é mesmo?
Assim como já não faz diferença aquela vez em que o sangue subiu aos olhos e eu disse indelicadezas para a cliente no outro lado da linha. Que azar estar sendo monitorado exatamente naquela ligação. Poderia perder meu emprego no telemarketing por ter sido um fraco, o quinto emprego só naquele ano. Tudo bem, você consegue, você me disse.
Volta pra casa, mais 2 horas de viagem. Ainda bem que eu sempre tive a companhia de um livro comigo. Era Jane Austen ou Stephen Hawking naquele dia que eu cheguei para contar que havia conseguido uma vaga de estágio? Caralho, lembra como eu estava feliz? Depois de tanto procurar… Você se esforçou também, me abriu os olhos que o mercado audiovisual não era para todos e que eu não podia continuar uma vida tão instável. Ok, entendi. Talvez nos próximos anos. Enquanto isso, trabalhar com publicidade pagaria o aluguel, e a hipocrisia que eu sentia poderia ser engolida com tantas mil outras engolidas diárias.
Talvez fosse o início. Talvez fosse a partida para um novo eu e uma nova você.
Você, que sempre tinha para mim um cachorro quente esperando nas esquinas do Paraíso. Só você sabe o quanto eu almocei os 4 reais mais saborosos, dolorosos e efêmeros da minha vida, como também sabe das pontadas que eu sentia no estômago toda vez que entardecia. Me ensinou a comprar a bolacha mais barata da Ana Rosa. Sessenta centavos e bastava 3 mordidas para enganar até a última aula. Me dava saudades da comida e do carinho da dona Cleusa, que mulher!
Aliás, as pessoas que você colocou na minha vida… O que teria sido de mim sem elas? Desde a canceriana que me levou para o Embu das Artes – uma amizade tão curta, mas tão intensa – passando pelo Arcanjo que eu precisei conhecer várias vezes como se fosse a primeira vez, a Eroticrs e toda a família que me acolheram por meses e meses, assim como a diva paraense da twitcam. Quem diria que a Allexpop se tornaria o guerreiro que eu admiro tanto? Sem falar de todos que estiveram comigo seja na La Mafia, seja na Inês. Que amor eu sinto por estas repúblicas. Você sabe que é inestimável por todos eles, mesmo com todos os surtos que levaram a tantas brigas e inimizades. Você me deu a chance de tentar fazer a diferença na vida de dois conterrâneos, mas foram tantos os tropeços, foram tantas as palavras repetidas e mal interpretadas. As pessoas que você colocou na minha vida, eu teria sido um nada sem elas. Mas teve um preço. Custou caro. Ou custou exatamente o que eu devia ter pago?
O natal de 2013 foi o que mais doeu em mim, entretanto sei que todos crescemos. Você me fez engolir seco, não é mesmo? Uma dor a mais, uma dor a menos. Qual o problema depois que apontam uma arma para a sua cabeça? Ou que uma overdose coloque fim numa das possíveis histórias de uma criança. Eu aprendi contigo que todas as histórias com finais felizes terminam antes mesmo de começar. Enquanto escrevo, mantenho a cabeça abaixada. Dias difíceis, já sabemos que foram tantos.
E não é incrível nos enxergamos tão fortes e resistentes? Você me olhava e dizia que dali eu seria capaz de tudo! Rio de Janeiro, Curitiba, Porto Alegre ou Manaus. Londres, Barcelona, Nova Iorque ou Berlim. Por um tempo acreditei. Por muito tempo ouvi sobre a minha coragem. Podemos ter dado a cara a tapa, só não entendem que o verdadeiro mérito estava em ser inconsequente e subversivo. Passam-se os anos, apagam-se mais velas. Cada vez maior é a certeza que a tal coragem jamais teria aparecido se eu não tivesse alimentado um monstro antes de te conhecer. E quão terrível. Você viu coisas horríveis sobre mim, mas jamais entenderá o meu passado, jamais entenderá os motivos que me trouxeram até você. Não adianta cantar Comfortably Numb comigo ou me apresentar todas as TVC 15 atrás das portas de banheiros em bares, nem me impressionar com uma boa noite supostamente underground no bar do Netão. A gente pode ter se visto no fim do rolê, pela manhã no Eclético’s, mas nada, nada, se compara com olhar o céu estrelado, deitado no cimento de uma construção vazia, e saber que todo seu futuro derreteu. Pode ter sido tão pesado quanto o que você acredita. E eu tenho algumas infelizes cicatrizes para provar. É isso. É isso que me moveu. E não é incrível, agora, nos enxergamos tão fortes e resistentes?
Resistência, este foi o ato que tivemos de abraçar. Como quando nas eleições, lembra? Você estava tão desesperada que o Russomanno pudesse se tornar prefeito. Eu me recordo da sua agitação pelas ruas. Te ajudei com aqueles lambes do Haddad, as mil e uma discussões políticas e quando precisava apenas fazer volume. Fizemos um bom trabalho. Você ficava tão viva nesses momentos. Já te falei que eu sempre te achei mais linda que nunca todas as vezes que estávamos lutando nas ruas? Queria minha câmera sempre comigo, bancar o cara da mídia independente e gravar cada segundo seu, pois você estava maravilhosa em todas as marchas da maconha, protestos pró-Palestina, na solidariedade pelos professores, “não vai ter Copa!”, todas as vezes que quisemos reivindicar o corpo livre, a parada gay, no silêncio pelas trans que se foram, em todas as marchas das vadias, nos protestos feministas, fora Alckmin, fora Cunha e, claro, junho de 2013… Exceto o dia 17 em diante. Todo aquele verde e amarelo nunca combinou muito com a gente. Falando nisso, te devo desculpas pelos 20 centavos, se em algum momento te machuquei pra valer. Porém, todo aquele estrago que eu fiz, eu faria de novo. Era aquilo ou ter as pernas quebradas pela polícia militar. É que eu sempre enxerguei em você uma força maior a cada barricada de fogo, a cada vidro quebrado, a cada parede pixada. Olho pra você hoje e sei que muito do que a gente defendeu valeu a pena. Éramos tão jovens, mas será que vivemos mesmo como nossos pais? Falaram que nos arrependeríamos e isso não aconteceu. Falaram tanto.
Está tudo bem. As pessoas costumam falar bastante e não acreditar em sentimentos sinceros, muito menos incentivar as melhores das nossas aspirações. E ainda assim, veja como estamos! São tantos os motivos para nos orgulharmos, mesmo que pouco tenha saído conforme o plano.
Para que planos?
Quem diria que o garoto que um dia fora apelidado sem teto estaria vivendo na Alameda Santos e usufruindo de todos os privilégios de uma localização como a Paulista, a mesma que brilhava os olhos quando aqui chegou? Quem diria que depois de todo pouco causo de uma faculdade de nome conseguiria outra bolsa integral para concretizar um sonho de estudos? Quem diria que depois de tantos bicos e empregos emergenciais conseguiria se manter em uma área por tantos anos, mesmo com tantos colegas ainda desempregados? Quem diria que ele estaria vivo após ter alimentado tantos assombros em momentos repulsivos há tempos?
É. Foda-se os planos. Eu não me tornei um cineasta que respira arte, mas ainda estou aqui.
Estou aqui com você, que não consegue agradar a todos e muito menos faz questão.
Me desculpa por parecer um egoísta, por falar tanto e praticamente só de mim. Acontece que eu só tenho total propriedade para falar sobre as minhas experiências. É sobre o que eu já vivi que eu posso escrever com a absoluta certeza, que eu posso exprimir o que há muito está guardado. E eu quis falar sobre estes 5 anos, o que realmente significam, mesmo que nas entrelinhas. Nossa relação foi conturbada, meu sentimento por você muitas vezes oscilou entre o amor e o ódio. E ainda assim é para você que eu olho, é para você que eu volto. Eu vivi estes 5 anos e eles mudaram tanto em mim, e tudo isso só foi possível por causa de você.
Você é a cidade que permitiu que eu estivesse livre, ainda que limitado e inconsciente. Você é a cidade que eu sinto que conheço mais do que o lugar de onde vim. Você é a cidade que não me julgou quando cheguei. Você é a cidade para onde tantos vêm, tantos que se tornaram meus amigos para uma vida toda. Você é a cidade que esfregou desilusões na minha cara. Você é a cidade que colocou obstáculos no meu caminho e assistiu eu superá-los. Você é a cidade que me deu força para brigar, mesmo que não fosse a intenção. Você é a cidade que mostrou que o Sol, infelizmente, não é para todos, mas que a gente tem pelo menos uma chance de correr atrás e lutar pelo contrário. Você é a cidade que foi essa minha chance. Você é a cidade que me proporcionou inúmeras experiências e que foi cenário da minha evolução. Você é a cidade que me fez crescer, em todos os sentidos. Você é a cidade que me trouxe mais uma centena de apelidos e nomes, e ainda assim é a cidade em que eu sinto que posso ser eu. E eu te agradeço tanto por poder ser eu.
Obrigado, São Paulo, por estes 5 anos.