Os contos políticos e sombrios de “As coisas que perdemos no fogo”, de Mariana Enriquez
“As coisas que perdemos no fogo” é uma coletânea de 12 contos da autora argentina Mariana Enriquez. O livro explora questões sociais e políticas enquanto navega em temas sobrenaturais e macabros.
No início do mês, pedi recomendações de livros REALMENTE BONS para ler, daqueles que se tornam a melhor leitura do ano. Lá no Instagram, Nara Barrocal respondeu: “Lê As coisas que perdemos no fogo da Mariana Enriquez. Sensacional”. Sendo ela uma leitora assídua da qual confio, não hesitei em começar a leitura.
As coisas que perdemos no fogo é uma coletânea de 12 contos da autora argentina Mariana Enriquez. Publicado em 2016, o livro explora questões sociais e políticas enquanto navega em temas sobrenaturais e macabros.
As histórias funcionam independentemente, mas contém elementos sombrios e perturbadores em comum, além de serem narrados por mulheres — inclusive, pouco agradáveis.
Ainda que existam forças malignas na atmosfera desse universo — o qual explora cenários do urbano ao rural argentino —, o mal também está presente em pessoas comuns. Mariana Enriquez utiliza o horror e o realismo mágico a fim de explorar questões como a desigualdade, violência de gênero, opressão social e a ditadura.
Os contos são os seguintes:
O menino sujo
A cidade fica em polvorosa com um menino decapitado, o qual a narradora acredita ser o mesmo que ela ajudou antes. Horror urbano que passa pelo vício no crack, marginalização das travestis, fome infantil e até o pânico satânico.
“Eu me dei conta, enquanto o menino sujo lambia os dedos lambuzados, do pouco que me importavam as pessoas, de como me pareciam naturais aquelas vidas desgraçadas"
A Hospedaria
Duas garotas fazem planos de esconderem carne para apodrecerem nos colchões de uma hospedaria que já serviu como quartel militar na ditadura militar. Enquanto o fazem ficam aterrorizadas ao confrontarem os soldados do passado. O conto também explora o despertar lésbico de uma das garotas.
No silêncio do edifício vazio podia escutar sua respiração agitada. Estou supernervosa, Rocío sussurrou-lhe ao ouvido e levou ao peito a mão de Florencia que não carregava a lanterna. Olha como meu coração está batendo. Florencia deixou que Rocío apertasse sua mão contra aquela maciez e teve uma sensação estranha, vontade de fazer xixi, um formigamento embaixo do umbigo. Rocío soltou a mão de Florencia e se meteu num dos quartos, mas a sensação ficou ali, e Florencia teve que agarrar a lanterna com as duas mãos, porque a luz tremia.
Os anos intoxicados
Contado com passagens entre 1989 e 1994. Adolescentes inconsequentes, álcool, drogas e anorexia.
”Às vezes, não cheirávamos cocaína e preferíamos um pouco de ácido com álcool. Apagávamos as luzes e brincávamos na escuridão com incensos acesos; pareciam vaga-lumes e me faziam chorar, me faziam lembrar de uma casa de telhas com jardim longe da cidade, uma casa com laguinho onde os sapos brincavam e os vaga-lumes voavam entre as arvores."
"Paula não sorria porque estava tão magra que, quando os dentes apareciam, ela parecia uma caveira"
A casa de Adela
Acho que este é meu conto preferido no livro. Adela é uma menina de um braço só viciada em contar histórias macabras e inventar motivos de ter o cotoco que gerava repulsa nas pessoas. Pablo adorava confrontar suas mentiras. Um dia eles entram numa casa, mas Adela não saiu mais de lá.
”Ela não se importava. Nem sequer queria usar um braço ortopédico. Gostava de ser observada e nunca escondia o coto. Se via a repulsa nos olhos de alguém, era capaz de esfregar-lhe o cotoco na cara ou sentar-se muito perto e roçar o braço do outro com seu apêndice inútil, até que a pessoa estivesse humilhada e à beira das lágrimas."
"Ele soube esconder até o final, até seu último ato, até só restarem dele aquelas costelas expostas, aquele crânio destroçado e, sobretudo, aquele braço esquerdo no meio dos trilhos, tão separado do corpo e do trem que não parecia produto do acidente — do suicídio, continuo chamando de acidente o seu suicídio —; parecia que alguém o levara até o meio dos trilhos para exibi-lo, como uma saudação, uma mensagem."
Pablito clavó un clavito: uma evocação do baixinho orelhudo
Conto baseado na história do Baixinho Orelhudo (El Petiso Orejudo), que agora vim saber que foi o primeiro serial killer argentino. Um adolescente que matou e torturou bebês e crianças em Buenos Aires.
”No dia seguinte, cometeu seu erro fatal. Sabe-se lá por que, compareceu ao velório do menino que havia matado. Disse, mais tarde, que queria ver se ainda tinha o prego na cabeça. Confessou esse desejo quando o levaram para acompanhar a autópsia, depois da denúncia do pai do menino morto. Quando viu o cadáver, o Baixinho fez uma coisa muito estranha: tapou o nariz e cuspiu, como se sentisse nojo, embora o corpo ainda não tivesse entrado em estado de decomposição. Os legistas, por algum motivo que a crônica policial da época não explica, fizeram-no ficar nu. O Baixinho tinha uma ereção de dezoito centímetros. Acabara de fazer dezesseis anos."
Teia de aranha
Juan Martin é marido chato e insuportável da história, de quem a narradora adoraria se livrar. Natalia parece saber o que fazer numa viagem que os 3 fazem para o Paraguai e o carro quebra na volta.
Senti vergonha outra vez e sorri para o caminhoneiro louro, que tinha uma covinha deliciosa no queixo, e ele sorriu para mim também. Tomara que vire namorado de Natalia, pensei, e tomara que Natalia se canse dele como se cansa de todos e então ele se dê conta de que sempre, desde o primeiro momento, desde que nos olhamos nos olhos na recepção do hotel, esteve apaixonado por mim.
Fim de curso
História que se passa na quinta série. Uma das alunas arranca as unhas no meio da sala de aula. Depois os supercílios e cabelos. Talvez, não se aproximar dela fosse uma boa ideia.
Agora eu tentava me sentar perto dela nas aulas. A única coisa que eu queria era que ela falasse comigo, que me explicasse. Queria visitá-la em sua casa. Queria saber tudo. Alguém me dissera que falavam em interná-la. Eu imaginava o hospital com uma fonte de mármore cinza no pátio e plantas roxas e marrons, begônias, madressilvas, jasmins — não imaginava um instituto para doentes mentais sórdido, sujo e triste, imaginava uma clínica bonita cheia de mulheres com o olhar perdido. Sentada a seu lado, vi, como todas as outras, mas de perto, o que estava acontecendo. Todas víamos, assustadas, maravilhadas. Começou com seus tremores, que não eram bem tremores, mas sim sobressaltos. Sacudia as mãos no ar como se espantasse algo invisível, como se tentasse impedir que algo batesse nela. Depois começou a tapar os olhos enquanto dizia que não com a cabeça. Os professores notavam, mas tratavam de ignorar. Nós também. Era fascinante. Ela desmoronava em público sem pudores e nós é que sentíamos vergonha.
Nada de carne sobre nós
Uma caveira é levada para casa, ganha peruca, lâmpadas para os olhos e o nome de Vera. Mais um conto envolvendo anorexia e o fim de um casamento.
Uma semana depois de parar de comer, meu corpo muda. Quando levanto os braços, as costelas aparecem, ainda que não muito. Sonho: algum dia, quando me sentar neste piso de madeira, terei ossos em vez de nádegas, e os ossos vão atravessar a carne e vão deixar rastros de sangue no chão, vão cortar a pele por dentro.
O quintal do vizinho
Outro conto em que o casamento se acaba. Aqui o homem é altamente preconceituoso em relação à saúde mental. A mulher pode ser que esteja depressiva, pode ser que esteja louca. A relação deles acaba e ela tenta salvar um menino acorrentado no vizinho.
Paula quis correr, mas, como nos pesadelos, as pernas pesavam o corpo se negava a dar meia-volta, algo a mantinha pregada na porta do quarto. Mas não estava sonhando. Nos sonhos não se sente dor.
Sob a água negra
História de uma promotora que tenta prender mais um policial que assassinou adolescentes afogados em um rio nojento e sujo que chegava a causa mutações nos moradores da favela.
Quantas vezes um policial negava, na cara dela e diante de todas as evidências, que tinha assassinado um adolescente pobre? Porque era isso o que faziam os policiais do sul, muito mais do que proteger as pessoas: matar adolescentes, às vezes por brutalidade, outras porque os garotos se negavam a “trabalhar” para eles — roubar para eles ou vender a droga que a polícia confiscava. Ou por traí-los. Havia muitos motivos, todos ruins, para matar adolescentes pobres.
O imbecil não tinha mandado apagar a conversa; a isto ela também estava acostumada por todos os seus anos na promotoria: à combinação impossível de brutalidade e estupidez da polícia.
Verde vermelho alaranjado
Senti nostalgia lendo esse. De quando a internet era uma maravilhosa promessa incrível. De quando amizades virtuais eram tão poderosas quanto as offline. Deep Web. Música. Internet nos anos 90. Parece uma experiência de acompanhar a depressão em alguém com quem tínhamos contato pelo msn.
Vai ver ele dizia à mãe que éramos felizes. Vai ver ela simplesmente decidiu acreditar nisso. Vai ver ele decidiu que sua tristeza estaria ao meu lado para sempre, enquanto ele quisesse, porque as pessoas tristes não têm piedade.
As coisas que perdemos no fogo
Imagine que, se antes os homens tacavam fogo em suas esposas, agora as mulheres passassem a protestar em um movimento histérico que elas mesmas fizessem isso. O conto que dá nome a coletânea é sobre feminicídio, o torpor da sociedade e uma alusão clara a inquisição e caça as bruxas.
Foram necessárias muitas mulheres queimadas para que começassem as fogueiras. É contágio, explicavam os especialistas em violência de gênero em jornais e revistas e rádio e televisão e onde mais pudessem falar: era tão complexo informar, diziam, porque por um lado era preciso alertar sobre os feminicídios e, por outro, falar do assunto provocava aqueles efeitos, parecidos ao que ocorre com os suicídios entre adolescentes. Homens queimavam namoradas, esposas, amantes, por todo o país. Com álcool a maioria das vezes, como Ponte (de resto, o herói de muitos), mas também com ácido, e num caso particularmente horrível a mulher tinha sido atirada em pneus que queimavam no meio de uma estrada por causa de algum protesto de trabalhadores.
O livro é recomendado para quem se interessa por histórias sinistras e tensões sociais. Aliás, essas narrativas que refletem questões culturais do nosso tempo, fez com que a crítica atribuísse à sua obra o selo de "horror político".
Em entrevista a Galileu, a escritora explica que o gênero traz a possibilidade de chegar a lugares onde textos realistas não alcançariam, e que os autores da geração anterior à sua promoveram um horror pautado no cotidiano, incorporando estereótipos do gênero, mas dentro da realidade.
Foi a primeira obra que li de Enriquez e adorei. Obrigado pela recomendação Nara!