Depressão, autocompaixão e a roda das emoções
Quanta ironia. No mesmo dia em que publiquei o último texto falando sobre como eu estava bem mentalmente, apesar das procrastinações, perdi a melhor coisa que me aconteceu em 2022 e fui tragado para a tristeza profunda — lugar tão fácil de se encontrar e que parece ser o único lugar possível.
Pirata
Pirata não gosta das crianças, com seus gritos e movimentos bruscos, sempre correndo atrás dele quando só quer paz. Por isso, ele dormiu na caixa de transporte e só subiu na cama ao lado da minha cabeça quando minhas sobrinhas já estavam roncando. Foi a última vez que o vi, esparramado na beirada do colchão.
Normalmente, o dia começava com Pirata miando por comida assim que eu levantava. Ou se eu demorasse muito, corria chamar na porta da minha mãe. Na sequência saía pela porta da cozinha para xeretar no mato em frente a casa, caçar passarinhos e se esparramar no chão, principalmente no corredor atrás da casa, onde ele podia observar melhor o movimento dos calanguinhos. Sempre em lugares próximos. Ocasionalmente vinha me procurar ao longo do dia e em momentos específicos dormir próximo: na cadeira ao lado enquanto eu almoçava ou na cama atrás de mim se estivesse no computador. Se eu não o visse, era só chamar que em menos de um minuto ele vinha na minha direção.
Publicar o último texto foi a primeira coisa que fiz no dia 21. Não procurei pelo Pirata nem antes e nem depois. Maratonei uma série a tarde e pensei que ele estava se escondendo das crianças, logo ia aparecer miando aos meus pés faminto. Não apareceu. Ao fim da tarde chamei por ele e não tive retorno. Estranhei e esperei mais um pouco, apreensivo. Conforme a noite caia, minha intuição dizia que algo ruim havia acontecido com ele. Vesti uma calça, tênis e uma camisa de flanela de manga comprida. Peguei a lanterna e fui atrás dele na escuridão no meio do mato que estava muito alto devido às chuvas, ignorando o alarde da minha mãe e padrasto de que era perigoso entrar na mata a noite. A cada minuto que se passava sem sinal dele, maior se tornava o aperto em meu peito e mais bagunçada minha cabeça ficava, me fazendo pensar em coisas que não devia.
Depressão
A noite foi recheada de pensamentos negativos. Não somente preocupações, mas visões de todas as formas possíveis de que o Pirata poderia ter sofrido e estava sofrendo enquanto eu não estava lá para protegê-lo. Eu o via sangrando, dilacerado e miando por socorro. Eu o via comido por vermes com o esqueleto a mostra enquanto a carne apodrecia. Cada passo no escuro era uma nova visão de seu corpo abandonado. Pensava na culpa que carrego pela morte de uma gata que tive quando criança, brutalmente atacada pelos cães do vizinho enquanto eu jogava videogame. Esses pensamentos ruins se intensificaram e somaram a outros pensamentos negativos sem sentido. Minha cabeça era um furacão de perturbações, inclusive remoendo as dores de família, que naquele momento não se mostravam preocupados como eu estava e inicialmente me desencorajaram em procurá-lo. A paranoia me dizia que qualquer amigo que estivesse ali estaria me dando mais apoio que qualquer membro da minha família.
Essa é uma constante da minha depressão. Quando algo muito ruim que aparenta estar sob meu controle acontece, eu não fico “apenas” triste. Vem um combo junto de pensamentos intrusivos, impulsos autodestrutivos e ruminação mental. E é tão exaustivo lidar com esse combo. A tristeza é o menor dos meus problemas no meio disso, até porque ela ocasionalmente está por perto, sem precisar de algum motivo para me dar as mãos. A melancolia é meu modus operandi e no decorrer da vida aprendi a viver funcionalmente com ela. Já com o combo ativado, não é possível manter a lucidez.
Assim que minha intuição disse que algo estava errado e que o Pirata não voltaria naquele dia, me tornei uma esponja negativa. A forma com que todas as pessoas ao meu redor se comportavam, continuando suas vidas normalmente, me ofendia. A cada minuto que se passava, maior a ruminação e maior o ódio que eu sentia, ódio de mim e de todos. Era uma esponja negativa intensificando pensamentos negativos alheios e relacionados a outros traumas. Minha cabeça barulhenta riscava os mesmos discos de sempre e só pararia se eu cedesse aos impulsos.
Pirata não voltou. Recebi apoio. Meu ódio pelos outros diminuiu. Sobrou a tristeza profunda e a incessante batalha de me manter racional.
Autocompaixão
Estava lendo um artigo da Dr. Hannah Rose sobre a ciência da autocompaixão, sua importância e benefícios com conselhos de como praticá-la. Percebi o quanto é difícil ter compaixão comigo mesmo.
Compaixão pode ser definido como o desejo de aliviar o sofrimento de outra pessoa, e autocompaixão é simplesmente o ato de mostrar esse mesmo tipo de cuidado consigo mesmo.
Quando estou sofrendo muito durante uma crise, dessas que vem o combo todo que eu disse acima, o desejo pelo comportamento autodestrutivo é o mais próximo ato de autocompaixão que posso ter. Por mais absurdo que possa parecer, é um caminho de alívio de sofrimento. Minha autoconsciência e compreensão dos meus transtornos me impedem de tomar decisões violentas e impulsivas, ainda que não impeçam o desejo.
Durante a crise, eu mereço o sofrimento. Muitas vezes durante todo o episódio depressivo, que pode durar semanas. Não só mereço como intencionalmente busco por ele, como se eu tivesse nascido para isso e já tivesse calejado de saber que não tem o que fazer. É assim que tem que ser.
Ocasionalmente tenho uma mudança de humor repentina e passo a enxergar com clareza. Percebo o tamanho da baboseira em que estava acreditando sem o menor sentido. Nesses momentos preciso me agarrar a ideia de me mexer e acordar para a vida que continua (e se entregar é uma bobagem), buscando formas de não cair de volta no buraco. Preciso lembrar que além de eu não merecer nenhum sofrimento, nada do que acontece está sob meu controle e muito menos sou culpado — esses são os momentos em que eu consigo racionalmente exercer a compaixão. Então, às vezes tenho outra mudança de humor e volto a acreditar nas mesmas baboseiras. O ciclo continua.
A Dr. Hannah diz que escrever é uma estratégia para praticar a autocompaixão. Escrevo principalmente para expurgar demônios. Sei que a prática de registrar os sentimentos e analisá-los é uma forma de compreender e ter maior domínio sobre o que me afeta. E recentemente considerei mais uma camada de análise, recorrendo à roda das emoções para melhorar meu vocabulário de sentimentos e entender como eles se manifestam no meu corpo.
Roda das emoções
Fui inspirado pela publicação digital The Pudding, que conta uma história de jornada de consciência emocional, explorando o poder de nomear e visualizar os sentimentos.
Essa história apresenta alguns conceitos interessantes. Como o da granularidade emocional: quanto mais específico somos sobre o que estamos sentindo, mais facilmente podemos identificar o que nosso corpo está tentando nos dizer. E de como associar os sentimentos às cores, como no filme Divertidamente da Pixar.
Utilizando a roda das emoções para associar os sentimentos às cores e os desenhando numa visualização de como eu os sentia, pude começar a identificar alguns traços. Por exemplo:
- Pude perceber que a ansiedade se manifesta muito na minha mandíbula, e eu nunca havia feito essa ligação até começar a visualizar as emoções dessa forma.
- Antes de entrar no quadro depressivo, eu já carregava o sentimento de culpa — que nada tem a ver com gatos. Me sentia culpado por não conseguir exercer as atividades que eu gostaria por estar ansioso. E quando a culpa estava relacionada a ansiedade, eu a sentia na cabeça, mas quando ela foi relacionada a depressão, senti no peito.
- Antes mesmo do ocorrido com o Pirata, eu já carregava o sentimento de perda. E o porquê disso? Eu não faço a menor ideia. Só sei que é o que eu sentia e foi assim que registrei.
- Três dias após o Pirata ter sumido, praticamente tudo que eu sentia era relacionado a tristeza. E sentia muito. Como se eu tivesse uma camada de ódio protegendo toda minha tristeza.
- Quando o ódio passou, a tristeza permaneceu, mas ficou sem proteção. E ela mesma encobriu a culpa que está no cerne de toda a questão.
Olhar para os sentimentos dessa maneira é quase como se eu pudesse trafegar por eles buscando formas de removê-lo até chegar em seu centro. E caralho, como eu gostaria de estar fazendo isso com a ajuda de um profissional e não surfando deliberadamente entre o que sinto e reflito sobre.
Desde que o Pirata sumiu, eu não consegui mais me concentrar por longos períodos. Não consegui mais ler nenhum livro. E apesar de duas semanas depois eu ter maior compreensão sobre meu próprio humor, além de tê-lo mais controlado e conseguir escrever isso aqui, preciso da ajuda de um profissional. Já precisava antes, venho enfrentando a ansiedade desde dezembro. Contudo, meu plano de saúde da Unimed parece não querer me ajudar muito com isso, há um mês estou sendo jogado de um setor para o outro para conseguir acesso à plataforma de psicologia online da Unimed Fesp, o Psicologia Viva.
Tomara que resolvam isso logo, se não terei que formalizar reclamações nos órgãos competentes e provavelmente me livrarei desse plano de saúde para pagar consultas particulares. Ah, o amor e o ódio pela psiquiatria e psicologia que os doentes mentais engolem.
Hoje faz duas semanas que o Pirata sumiu. Algumas pessoas me contaram de seus gatos que desapareceram por uma semana e até meses. Acho improvável que esse seja o caso dele, sempre viajando comigo com total liberdade e sempre numa área próxima. Acredito que fizeram algo de ruim a ele. Procurei muito, espalhei cartazes nos postes e consegui autorização para vasculhar os terrenos dos vizinhos. Em um deles, encontraram a gata de outro vizinho envenenada. Ela sangrava e tremia e chorava e estava numa condição terrível. Uma moça cuidou dela e espero que já esteja recuperada. Se o Pirata foi envenenado ou atacado pelos cães da região, não entendo porque não encontrei nenhum vestígio dele. Então essa semana pagarei por anúncios nas redes sociais e espero que alguém tenha alguma informação e entre em contato.
Sinto saudades do meu parceirinho de viagens. E me sinto culpado, mesmo tendo aceitado esse risco quando o resgatei.