Arthur não gosta do Natal
Arthur não gosta do Natal. Uma vez vociferou que odiava o Natal numa conversa no trabalho. Era mais novo na época, quando dizer que odiava remetia a uma tentativa falha de esvaziar o coração daquele sentimento tão negativo que o mês de dezembro carrega. Responderam com pergunta debochada se esse ódio provia do temível vilão da sociedade, o capitalismo e suas artimanhas para lucrar em cima de uma data como qualquer outra, se aproveitando da ingenuidade e fácil manipulação do sentimento de culpa e vazio no coração das famílias. Também, mas o ódio nasceu com o treinamento pentecostal ao qual foi submetido ainda criança, ensinado a odiar tudo que vem dos católicos, e nada mais católico do que capitalizar em cima do nascimento (e da morte) de Jesus Cristo, e na data errada ainda por cima.
A tréplica veio em formato de olhos girando para cima, um julgamento tão rápido e fácil esse, que não demanda esforço, sem tempo a perder com imbecis que se acham mais espertos por odiarem o natal. A conversa teve que acabar. Não porque alguma das partes sabia que ela era inútil, nem porque alguém estava indisposto a escutar o outro. Acabou porque tinha reunião. Debater a legenda no post da página do cliente com mil seguidores certamente é uma prioridade mais produtiva.
Arthur não gosta do Natal. E nesse ano ele ainda não sabe para onde fugir. Ano passado esteve em uma pousada no litoral, onde todos os hóspedes também pareciam estar fugindo, principalmente as famílias. Seus colegas de trabalho atuais, não aqueles da conversa de anos atrás, perguntaram onde que sua família passaria a comemoração esse ano. Vejamos, meu pai estará com a família da minha madrasta em Santos, meu irmão com a família da minha cunhada em Bauru e minha irmã eu não sei, mas provavelmente em casa com o namorado dela. Arthur não se incomodou com os olhares e bocas dos colegas, estava ocupado imaginando como seria o natal de cada um dos membros da sua família. E então sua cabeça foi para longe, no tempo e na distância, para sua adolescência em Bauru.
Lembrou de encontrar a Fátima e cear o natal numa casa humilde da Cohab com o tio dela. A comida estava gostosa, mas estavam ansiosos para encontrar o restante da turma e encher a cara. Arthur conseguia ouvir a lata de cerveja do Rafael abrindo. Vamos lá pra casa, a ceia tá demais e tenho um doce pra gente depois. Demorou, é esse o presente que pedimos ao papai Noel. A ceia estava realmente boa, ele e Fátima jantaram pela segunda vez felizes da vida fazendo piada com a boa fortuna. E então a melhor parte, dividiram o papel que Rafael tirou da carteira e cada pedacinho foi para debaixo da língua de cada um. Esse doce é bom demais, vocês vão ver quando bater. Precisamos passar na Julia, ela está nos esperando para buscá-la. Arthur começou a rir copiosamente enquanto seus colegas do trabalho se afastavam, inevitável conforme lembrava daquela noite na casa da Julia. Chegaram cumprimentando a família efusiva dela. Feliz natal a todos! Amiga, vamos? Podem parar vocês agora mesmo, quero todo mundo sentado na mesa, o pernil está servido, delicioso e minha filha só vai depois que vocês experimentarem. Aquela mesa era a mais farta. Sentaram para comer apenas um pedacinho, a barriga já estava cheia, mas não queriam fazer desfeita e somente assim a amiga seria liberada. Foi quando Arthur olhou para seu prato que percebeu que não existia a menor possibilidade de colocar comida na boca depois do doce. Bateu. Fátima gargalhava que havia um tatu bola no seu prato. Devem ter permanecido poucos minutos que pareceram horas à mesa, sem comer, rindo da comida, Rafael quieto de óculos escuros dizendo que não podia olhar, e Julia brava ao perceber que estavam todos chapados, menos ela. Expulsou todos da sala antes que a envergonhassem ainda mais na frente dos parentes que olhavam enquanto sua mãe estava em outro cômodo.
Hey, você está aí? Arthur? Onde você passará o natal? Sua colega de trabalho acenava com a mão a poucos centímetros de seu rosto, conquistando finalmente sua atenção. Onde eu vou passar o natal? Aqui em São Paulo mesmo. Mentiu. Provavelmente sairia da metrópole dirigindo a esmo com seu carro até algum local que desse para deitar no capô e observar as estrelas. Nesse ano, decidiu, ele quer um fardo de cerveja, levaria um doce - se tivesse, e pensar nos seus amigos de outra vida, outra cidade, outro tempo. Será que eles estariam comportados com seus próximos enchendo a barriga sem álcool e sem drogas? Que patético, pensou. Que patético, um babaca bêbado deitado no capô de um carro no meio do nada com saudades de seus amigos drogados que o salvavam no natal.
Acabou a reunião. A legenda do post informando o aniversário de uma famosa atriz americana foi para o calendário do cliente. Retornaram para suas posições e encontraram um bombom com os dizeres “ho ho ho feliz natal” em cima de suas mesas. Pega de volta que o Arthur é crente que odeia o Natal. Alguém disse e muitos deram risada. Arthur de sorriso embaraçoso disfarçou que estava vermelho, por mais que o comentário feito não fizesse sentido algum. Eu odeio o natal e eu odeio vocês. Pensou.
A ruminação mental que teve por todo o trajeto do metrô concentrou todas as frases ditas e não ditas que, pensando bem, gostaria de ter dito, pensando uma segunda vez, melhor não. Pra início de conversa, nunca quis que o assunto natal tivesse vindo a tona. Sabia que não devia ter falado que odeia o natal, nem de religião, mas é o tipo de frase que algo interno adora expurgar de um jovem de 20 anos que ainda não se entende para depois transformar num longo processo melancólico de “e ses” e “serás”. E se eu não tivesse falado de nada? E se eu tivesse falado que talvez meu principal motivo para odiar o natal venha de uma família disfuncional? Será que eles teriam feito piada depois? Será que eles entenderiam? Será que eu teria acabado com o clima no ambiente de trabalho? Por que que fui abrir minha boca? A ruminação desceu com ele da estação e seguiram caminhada.
Arthur não gosta do Natal e aquela era a primeira vez que ele passaria longe dos amigos desde que saiu de Bauru.