Minha vó quebrou o quadril

Há pouco mais de um mês vim para casa da minha mãe, situada numa zona rural do interior paulista. Na verdade, a casa é dos meus avós, minha mãe e padrasto vieram pra cá há anos para cuidar deles nesses últimos anos de vida.
Sempre escutei dos parentes que minha vó morreria antes por causa dos problemas de saúde, mas já se foram 4 anos que meu vô morreu e minha vó permanece entre nós - amém!

Cuidar de alguém nos últimos anos de vida é uma tarefa difícil - ainda mais se estamos falando de um idoso comum e não desses que chegam aos 90 fazendo música e dirigindo filme. Minha vó é das comuns mesmo, dessas que precisa tomar muitos remédios diariamente, diabética, hipertensa e cardíaca.

Desde que eu cheguei aqui minha vó ficou muito feliz e me pedia quase todos os dias para não ir embora. Ela não entende porque que eu não moro no interior e na sua cabeça vivo dentro de um programa do datena.

É a primeira vez que eu passo tanto tempo com a minha família em mais de 10 anos, então entendo como só de estar presente em mais de dois dias seguidos já é algo diferente do que estavam habituados.

Também entendo que por ser o cara mais ausente, mais distante e que seguiu uma vida nada convencional com a realidade do interior (não tô casado, não tenho filhos, não trabalho com algo que entendam), é normal a preocupação na cabeça de uma pessoa idosa.


Lá pelos meus 18 anos, minha tia sonhou comigo, eu sorria um sorriso enorme e depois pedia socorro. Isso foi alguns dias antes de eu ter sido espancado. Desde então, minha tia acredita que previu o que ia acontecer comigo e toda vez que sonham comigo ficam ainda mais preocupados.

Minha vó sonhou comigo no ano passado. Esse sorriso enooooorme que você tem. Lindo, lindo. Ai, como eu te quero bem. Toda vez que me vê ela conta do sonho, as vezes mais de uma vez no mesmo dia. Ai, como você sorria, esses dentão, nunca vou esquecer. Sempre intercalados pra falar do quanto ela se preocupa comigo e que eu deveria morar com ela e minha mãe. Eu falo pra ela parar de ver o jornal e que nada de ruim vai me acontecer, ou brinco que tomei uma facada, roubaram meu celular e que durmo na rua - até minha mãe pedir pra eu parar porque minha vó acredita.

Como toda pessoa, minha vó precisa de atenção, cuidado e carinho - nada que seja encontrado em abundância nessa família. Ninguém aqui segue regras bem definidas, ninguém almoça ou janta na mesa, e as relações interpessoais são totalmente danificadas de um acúmulo de anos e anos de desentendimentos.
Como toda pessoa perto da senilidade, minha vó fala muita besteira, assim como não é incomum ela se comportar como uma criança. E a fim de protegê-la dela mesma, a casa passou a ser trancada para que ela não fugisse para regar plantas desnecessariamente e caísse e se machucasse, como já aconteceu. Sua rotina se tornou um eterno ciclo de viver deitada assistindo TV, levantar para comer, tomar remédios, mijar no chão do banheiro, reclamar de sentir-se presa e lamentar a própria vida e ausência do meu vô.

Vira e mexe minha mãe perde a paciência e respostas básicas acabam tendo entonações agressivas sem que ela perceba - não só ela. Num fim de semana que precisei ir pra São Paulo, pedi para ela me levar até a rodoviária e aproveitei os poucos minutos que estávamos sozinhos para pedir para ela dar mais atenção a própria entonação. Que não importava o tanto que ela ajudasse a minha vó, seria da entonação dela que minha vó lembraria o dia todo e não do tanto de esforço que minha mãe colocava para manter a casa funcionando.

Longe de querer culpar a minha mãe por algo. Ela está exausta. Sua aposentadoria precisa dar conta de muitas bocas e o governo há anos vem confiscando seu salário cada vez mais. E se não bastasse a escassez financeira, sua saúde não é boa e precisa cuidar de uma idosa, de uma criança, de uma pessoa problemática e outra amargurada com a vida - e não estou incluso nesse pacote, guardo minhas amarguras para o twitter. Sua aposentadoria era para ser o momento que ela finalmente poderia descansar, mas por fim não pôde.

Nesse tempo que estou aqui, passei a ajudar nas tarefas domésticas e dar escapadas com a minha vó - que eram totalmente desaprovadas. Pegava na mão dela e a levava andar um pouco - sempre repetindo os mesmos assuntos, reclamando da vida e lamentando a morte do meu avô. Quase todos os dias, regava as plantas com ela vendo e até a deixava sozinha em lugares que qualquer outro familiar recriminaria com medo dela cair e quebrar a bacia.
Eu nunca enxerguei todo esse medo dela sair, cair e quebrar a bacia. Pra mim, dentro de casa ela também poderia cair e se machucar tanto quanto fora de casa. E que inferno de vida é esse de passar o dia inteiro trancado dentro de casa aqui no meio do mato?

Tentei mudar algumas coisas para minha vó ficar menos infeliz e minha mãe menos estressada.

Mãe, a vida já é complicada, não complique ainda mais.
Verdade.

Minha avó tornou um ritual nossas escapulidas e implorava que eu não fosse embora, sabendo que meus dias estavam contados e eu precisava voltar a tocar minha vida longe. Porém o universo quis estender a minha estadia.


Num dia de brigas, como de costume, como de rotina em mais uma família longe de ser perfeita, fiquei muito agitado. Minha vó saiu do quarto, veio para a sala e foi sentar-se no sofá. Tinha uma caneta bem no caminho de sua bunda e eu pude imaginar aquele tubo a machucando. Acho que gritei com ela. Vó, cuidado! Provavelmente por já estar agitado pela manhã conflituosa. Ela se assustou. Quis protegê-la e iniciei um estrago.

Consigo rever a cena em minha mente com clareza e tenho a impressão de que não esquecerei tão cedo seu rosto assustado, a péssima coordenação do corpo de alguém com baixo reflexo e a nítida perda instantânea do equilíbrio. Tal qual o tronco duro de uma árvore, ela caiu de lado. Seu corpo foi abaixo em câmera lenta, pude assistir a poucos centímetros de distância cada pedacinho dele tocando o chão. Seu corpo foi abaixo e lá ficou.

Os momentos seguintes foram ainda mais agitados. Tem alguns dias que esse parágrafo aguarda eu retomar os acontecimentos, mas não quero me prolongar. Escrever que instantes depois eu estava gritando ao restante da casa para defender que a culpa da minha vó ter caído não era dela mesma, e sim minha, não vai fazer o tempo voltar.

Meu padrasto e eu seguramos minha vó e a colocamos sentada no sofá. Minha mãe trouxe gelo e pressionou em sua coxa esquerda. Em seguida, já estava correndo de um lado para o outro para terminar de se preparar para pegarem estrada.

Coincidentemente, nesse dia, minha sobrinha tinha uma consulta séria em outra cidade que não poderia ser remarcada, mais de duas horas de viagem, já estavam atrasados. Coincidentemente, nesse dia, meus tios, que moram na casa ao lado, também tinham uma viagem marcada com o intuito de levarem uma vacina contra a asma do meu primo. Enquanto eu colocava café numa xícara, pensando em quão ˜perfeito˜ aquele dia era para um susto desses, sentindo um coquetel pungido de sensações esquisitas e negativas e ansiosas e... Minha vó ali, paradinha, quietinha, parecendo não querer incomodar enquanto os ânimos da casa estavam elevados, não querendo dar motivo para alguém vir apontar e repetir que há tempos falam pra ela tomar cuidado, que era a fim de justamente evitar que ela caísse que pegavam no pé dela. Seu semblante era triste, enxergá-lo me doeu.

Vó, tá tudo bem?

Não teve resposta verbal, apenas umas caretas e expressões envolvendo a mão que eu traduzi que se ela abrisse a boca para me contar o que estava sentindo começaria a chorar imediatamente e que ela não queria chorar naquele momento. Algo estava errado.

Mãe, acho que foi sério com a vó.

Vou pular para a parte que a ambulância chegou. Nesse momento, minha mãe já não estava em casa, estava na estrada em direção a Bauru. Meus tios foram para o hospital da cidade acompanhar a situação antes de também pegarem estrada, que aconteceu em direção a Botucatu e não mais Sorocaba. As limitações técnicas obrigaram fazer novos exames na Unesp. Voltaram somente no dia seguinte. Amanhecidos no corredor do pronto socorro, minha vó deitada na mesma maca. Não foi internada, nem lhe deram a insulina para sua diabetes. A Unesp é mais uma atingida no plano de sucateamento do serviço público. Uma desgraça.

Não foi pelo caos que se encontra o hospital público referência na região que minha vó voltou para casa, mas pelo receio de mexerem com uma idosa com tantos problemas de saúde. No dia seguinte ao ocorrido, estavam de volta como se tivessem perdido tempo e sanidade a toa. Do jeito que foi, voltou, talvez pior, alguns tantos parafusos a menos.

Minha vó quebrou o quadril.

Não que diminua a carga, ma o osso não necessariamente foi separado, estava trincado, o suficiente para ela precisar ficar em total repouso, deitada, sem se mexer, a fim de que o próprio osso faça o trabalho de calcificar e não seja necessário uma intervenção arriscada maior.

Minha vó voltou de uma longa espera no corredor do pronto socorro com o quadril quebrado e algumas alucinações.

Até aquele momento, eu estava nervoso. Morrendo de medo de que algo grave tivesse acontecido com ela. Morrendo de medo de que ela tivesse quebrado o quadril, que tivesse acontecido justamente o que todos nessa casa buscavam evitar e pelo qual diminuíram sua liberdade e autonomia, que tivesse acontecido justamente comigo que tentava resgatar um pouco do que tiraram dela na maior boa intenção.

Quando ela voltou, quando preparamos uma cama no meio da sala - porque a maca não entrava em seu quarto - rodeada de cadeiras e o sofá como uma grade improvisada, quando minha vó passou a primeira noite na sala de sua própria casa em um estado de total dependência, aí eu fiquei assustado. Ela não voltou somente com um osso danificado, sua cabeça também parecia ter sofrido, seja pelos medicamentos para a dor de ter a bacia quebrada, seja pelo trauma que viveu nas últimas 24 horas, nem sei se importa o motivo. A vó que estava sentada engolindo choro para quem eu tinha perguntado se estava bem já não era a mesma que estava de volta.

Filho, não quero que você se culpe por isso, não foi sua culpa.

Eu sei mãe, não estou me culpando. Sabíamos que isso aconteceria cedo ou tarde. Foi um acidente. O que me deixa puto é pensar que isso poderia não ter acontecido se a casa não estivesse tão agitada, se eu estivesse calmo e não gritasse com ela. Verdade, vamos aproveitar e falar sobre... Não, não quero falar! Deixa, deixa ele.

Mas não tem como evitar sentir que seja um pingo de remorso.


Minha vó quebrou o quadril.

Está de cama há duas semanas e vai permanecer assim no mínimo por alguns meses.

Eu não a empurrei e a fiz cair e se machucar, mas estava lá no momento em que lhe foi tirado a possibilidade de se movimentar.

Minha vó não fala mais do meu sorriso enorme, agora ela pergunta o que eu fiz com ela.

Gif do Logo do Cosmoliko, o planeta saturno, rabiscado