Aquele amigo que a internet deu

Algumas vezes a gente tá brincando de Planeta Diário na internet, outra hora aprendendo a fazer a barba e trocando figurinhas sobre como é crescer.

dois caras jovens tirando selfie, ambos sorrindo. o da esquerda tem cabelo cacheado escuro e usa uma camiseta, o da direita tem cabelo ondulado.
Dih e eu, em algum momento de 2012

O início dos anos 2000 foi um lugar interessante de se viver.

Uma época recheada de promessas e esperança. A tecnologia empolgava a passos largos. A internet alcançava mais pessoas.

E Harry Potter levava magia para as crianças a cada livro novo.

Apesar dos bons ventos mundo afora, em casa as coisas não eram tão agradáveis.

Meu pai passou por um dos últimos surtos de bipolaridade que pudemos acompanhar.

Na época, eu não entendia. Com certeza, ele também não.

Teve suas razões para acreditar que era melhor ir embora, para nunca mais voltar.

Menos traumático do que se tivesse ficado.

Eu já era um garoto depressivo, que odiava a si mesmo.

O abandono paterno facilmente poderia ter sido a gota d'água para me fazer encontrar conforto em fóruns que ensinassem a matar todos os viados.

Mas felizmente encontrei conforto entre outros fãs de Harry Potter.

Numa era pré-Orkut, a blogosfera transformou a forma com que as pessoas se comunicavam online.

Não era incomum encontrar crianças que sabiam HTML para customizar seus próprios espaços digitais, repletos de cores e toda a estética brega da época.

Assim como não era incomum crianças replicando dinâmicas de informação e mídia como promissores jornalistas por pura diversão.

Boa parte desses blogs eram dedicados ao "menino que sobreviveu".

Repletos de notícias sobre as gravações dos filmes, fofocas sobre o elenco, rumores sobre o nome do próximo livro e fragmentos sobre os personagens amados.

Além de muitas fanfics escritas por quem não aguentava esperar para mergulhar novamente nesse universo.

Eu fui uma dessas crianças.

Assim como o Diego, ou melhor, o Dih. Autor do "Bruxo Potter".

Engraçado lembrar que seu primeiro blog tinha esse nome, sendo ele da Sonserina.

Ou vai ver minha memória está me traindo. Isso foi há mais de 20 anos.

O Dih se inspirava na personagem Chloe Sullivan, da série Smallville. Uma garota inteligente que editava o jornal da escola.

A curiosidade da atriz que a interpreta (Allison Mack) ter sido presa envolvida num culto com tráfico sexual anos depois teria cabido perfeitamente em uma das suas fics.

Nos tornamos colegas de """profissão""".

Nossa rede de contatos aumentou. Logo éramos vários fãs de Harry Potter discutindo quem eram os melhores blogueiros para trabalhar. Quem tinha roubado o conteúdo de quem. Quem tinha o melhor template. Quem estava anunciando vaga na equipe de blogs maiores.

Fora comentários sobre os grandiosos acontecimentos nas nossas agitadas vidas, como uma ida ao Shopping Parque Dom Pedro. O que me chateava, já que em Botucatu nem tinha shopping.

O primeiro contato era nos blogs, mas a sequência de conversas se dava no MSN.

Era diversão, mas olhávamos com seriedade o que fazíamos e sentíamos o retorno na comunidade que se formava - e na expectativa de aumentar o Adsense.

Pelos anos seguintes vimos novos blogs surgirem e morrerem, como os nossos próprios, para que se reunissem ao de demais amigos com melhores estruturas.

Nos juntamos todos ao Portal 3 Vassouras.

A equipe era grande, rolava muita bagunça no chat em grupo e muita intimidade no individual.

Eles me inspiravam muito.

Para além do blog, era produzido zines, revistinhas, encontros e eventos que demandavam dedicação e trabalho de cada uma das pessoas do grupo.

Chegamos a reunir mais de 500 pessoas em uma escola de Campinas.

Às vezes me sentia meio inútil pela distância, mas o Dih me ensinou a como falar com a imprensa para anunciar os eventos.

Porra, tínhamos 14 anos!

Essas pessoas supriram uma dor em mim, que não tinha muito com quem contar.

Fora do mundo virtual, minhas amizades costumavam ser passageiras e me acostumei a aceitar migalhas de afeto de quem nem se importava tanto comigo a fim de não ficar sozinho.

Era com as amizades virtuais que eu ia aprendendo sobre crescer e chegar à adolescência.

Lembro de quando, na puberdade, a sombra da penugem do bigode começou a se destacar em meu rosto.

Dependendo do morro em que tu é filho de cria, é motivo para se orgulhar.

Não foi meu caso.

Fui mais zoado pelos parentes do que pelos garotos na rua e na escola que, obviamente e naturalmente, passavam pelo mesmo processo.

Era pra ser divertido, mas eu não sabia o que era pra entender.

Não era certo deixar aqueles pêlos crescerem?
Tinha que tirar?
Tirar como?

Nessa hora, senti muita falta de ter meu pai.

Talvez ele me mostrasse o que fazer, sempre tem umas cenas assim nos filmes, né.

Ou será que ele também me zoaria?

Esperei dar meia-noite, todo mundo em casa dormia, e conectei a internet discada.

O Dih já tinha barba. Me ensinou que tinha que passar a lâmina no sentido contrário dos fios e que precisaria de espuma.

Botei empecilho em todas as etapas e ele chegou a fazer um desenho horrível com o mouse.

Acho que eu só precisava conversar com alguém sobre uma coisa banal e idiota que acontecia comigo e eu não entendia, sem que fosse zoado por isso.

Fui lá no banheiro, improvisei espuma com sabonete e voltei pra comemorar com ele que eu fiz a barba pela primeira vez.

 

Algumas vezes a gente tá brincando de Planeta Diário na internet,
outra hora aprendendo a fazer a barba e trocando figurinhas sobre como é crescer.

 

Algumas vezes a gente tá compartilhando um suposto jogo raro do Pokémon,
outra hora confessando que tem vontade de beijar meninos.

 

E o tempo passa. A vida acontece.

Distancia e reaproxima pessoas.

Mas o carinho continua igual.

Além da certeza de onde encontrar aquele amigo: na internet.

Lá no Twitter, lá no BlueSky. Lá no blog dele, pois assim como eu, ele também continua blogando.

Escrevendo seus textos sobre amor, ficções, devaneios, suas dores pessoais.

Mesmo 20 anos depois.

 

Algumas vezes a gente tá lendo qual o último texto que o amigo postou no blog,
outra hora recebendo a notícia que houve um mal súbito na madrugada e ele não resistiu.

 

Não haverão novos textos no blog, nem quaisquer novas atualizações nas redes sociais.

Aquele amigo que a internet te deu e tu levou pra vida não vai mais responder.

Agora o seu perfil é só um reflexo do passado.

Um cemitério de memórias repleto de seguidores que continuarão visitando o perfil sem dar unfollow.

Apenas para lembrar o tanto de carinho que vinha da pessoa responsável por floodar as timelines com todo seu amor.

Quero acreditar que nesse momento o Dih está sentindo o carinho e amor de todas as pessoas que ele impactou, principalmente online, onde ele continuava conquistando tantos afetos, não importa a plataforma.

Avisei a comunidade no Bluesky, da qual ele gostava tanto e me incentivava a estar lá.

A skyline entristeceu, mas a chuva de mensagens de afeto só confirmaram o quanto ele era querido e continuava sendo por todas as comunidades em que passava.

A bio do Dih é "Não ter o que falar não me impede de continuar falando", e bota falando nisso.

Ele postou mais de 17 mil vezes no último ano no Bluesky, mais de 100 mil vezes no Twitter.

São tantos amigos virtuais que ele fazia e continuava fazendo.

Que bom que pude conhecê-lo antes de existir Bluesky, antes do Instagram e Facebook, antes do Twitter, antes do Orkut.

Conheci ele porque ele lia o meu blog e eu lia o dele.

Porque passamos a escrever juntos.

Porque Harry Potter nos uniu.

Infelizmente, nosso reencontro adiado desde a pandemia não vai mais acontecer.

Prometi que pisaria novamente em Bragança quando voltasse a São Paulo, para conferir o tanto que a Laurinha cresceu, dar um abraço na dona Célia e perguntar se ela lembra de mim, jogar Nintendo Wii e falar sobre o vizinho gato dele que eu peguei uma vez.

Vou ter que escrever, e acreditar que ele continua me lendo.

 

Eu queria muito, muito mesmo, um abraço agora nos amigos que Harry Potter e a internet dos anos 2000 me deram.

Chorar sozinho a perda de um amigo não parece certo.

 

Descansa em paz, Dih, obrigado pela sua amizade.
Espero que esteja tocando Evanescence onde você estiver.

Evanescence
My Immortal
4:30

ℹ️
Esse texto foi publicado originalmente no Bluesky e nos stories do meu Instagram, há exatamente um ano.

O tanto de espaço entre frases e cores não é do feitio desse blog, mas eu queria emular o mesmo design de quando o expressei pela primeira vez.

O blog do Dih ainda está disponível em Foca no Texto.
Gif do Logo do Cosmoliko, o planeta saturno, rabiscado