Recomeçando

Todo ano, nas semanas anteriores a fazer aniversário, eu me inspiro a escrever e muitas vezes cometo o pecado de começar tardiamente, quando os primeiros sentimentos já foram atropelados por novas experiências que passam a ocupar a prioridade da minha necessidade de botar pra fora em palavras todo rebuliço em meu peito - aí eu me decepciono comigo mesmo por não ter feito anotações enquanto era tempo.

Esse ano não foi diferente, embora eu não estivesse deprimido por fazer aniversário, eu estava deprimido simplesmente porque passei a maior parte desse ano doente como nunca estive antes. Na verdade, não sei se deprimido é a melhor palavra porque a depressão parece ser tão natural para mim que é quase como se dividíssemos um apartamento juntos pelo bem da nossa convivência, desde que cuidando para que ela não estrague nossa casa toda, o que acontece se eu não presto atenção aos sinais que ela passa, sujando os cantos, esgueirando pelo corredor, apagando todas as luzes e escurecendo as paredes. Tão logo percebo um sinal, eu a levo para o seu quarto para rabiscarmos uns livros e falo que vai dar tudo bem antes de fechar a porta de mansinho. Às vezes, acabo passando mais tempo do que devia no quarto com ela, e nesses momentos agradeço aos amigos que esmurram a porta para me tirar de lá.

Não, teve algo a mais nesse ano, algo que eu nunca tinha lidado em tamanha intensidade. Era uma ansiedade que eu não fazia ideia que podia chamar de ansiedade, não até um psiquiatra me explicar que eu estava com medo, um medo aterrorizante que me esperava do lado de fora da porta do nosso apartamento, às vezes mexendo na fechadura trancada repetidas vezes que o som estremecedor e apavorante me obrigava a correr para o quarto com minha velha amiga. Não importaria se meus amigos quisessem esmurrar a porta para me tirar de lá, só poderia ter uma única coisa do outro lado, esse medo, que conseguia passar por frestas e deslizar ao longo do corredor até o quarto escuro, onde, assim que me tocava, levava embora minha capacidade de respirar, me dava calafrios e a certeza da morte. Gostaria de gritar pedindo socorro, mas já não era mais possível falar ou gritar. Dado momento eu percebia que já não estava mais lá me tocando, então me acalmava e abraçava minha amiga por longos períodos, sem falar que ia dar tudo bem, pois estava apenas esperando o próximo toque desse que podia me alcançar a qualquer momento e certamente viria, estivesse eu preparado ou não.

Quando os ataques de pânico começaram, passei a evitar sair da suíte 2 em que eu descansava nas noites, absorto em minhas ruminações mentais, planejando me internar antes que eu fizesse algo grave irracionalmente. Felizmente, o pouco de razão que me restava munido de alprazolam me puseram na estrada em busca da vacina, começou o processo de recuperação.

É claro que o segundo ano de pandemia com a roleta russa da vida e toda a merda decorrente do isolamento social estão por trás de atingir os piores patamares de saúde mental - afinal, não estamos todos doentes e a cada ano que passa ainda mais doentes? Sorte de quem não precisa de remédios. No entanto, eu sei precisamente quando o trem descarrilhou, naquela semana eu tinha tanto ódio que, fora toda as complicações financeiras que a segunda onda do covid causou, não consegui lidar com a falta de prudência das aglomerações e nem com os absurdos imprevistos e bizarros: mortes, homícidio com indícios de tortura e homofobia, golpe com direito a ameaça de vida, processo na justiça... Deu ruim.

Durante os últimos 3 meses que estive nessa jornada tão próximo de completar 30 anos, um pensamento me martelou incessantemente, ou eram memórias de um passado que parecem pertencer a outra vida, daquele ano que eu vivi 10 anos atrás. 2011 era para ser considerado o ano mais difícil que eu tive de encarar, 2021 não estava nem na metade e queria ocupar esse lugar. E como pode? Como seria minimamente possível alcançar esse pódio sendo os obstáculos de um e de outro tão desproporcionais? Oras, você se livrou de vícios, ideações suicidas, comportamentos autodestrutivos, largou emprego e casa para invadir e reivindicar direitos em outra cidade, sem dinheiro, sem comida, sem teto, somente com determinação, muita determinação, e conseguiu solidariedade, amigos, estudos, carreira e um novo padrão de vida! Pensava comigo mesmo. O que me deixava ainda mais impotente. Supostamente, não era para eu estar mais maduro e forte com a idade? Engraçado pensar na maturidade, minha memória é ferrada mas eu tenho certeza que aos 22 estava na melhor versão de mim.

Lembro de quando fiz 20 anos, estava de volta por alguns dias em Botucatu. Estava lindo e radiante. Meu cabelo curto de franja, minha camiseta laranja do Trainspotting, minha jaqueta feminina do brechó da Lapa que uso até hoje. Tinha muito a comemorar, estava desempregado porque pedi demissão no shopping num surto repentino motivado pela ingenuidade de ser um caipira recém-chegado na cidade grande, mas quando voltasse a São Paulo teria onde ficar, pois havia sido acolhido por corações bondosos, sendo que a maior comemoração é que eu voltaria como aluno matriculado na faculdade graças às pessoas que me ajudaram a falsificar os documentos para não perder a terceira bolsa de estudos que conseguia. Estava finalmente vendo meus sonhos tomando forma. Pouco antes do 20 eu não tinha onde cair morto, no entanto foi pouco antes dos 30 que eu me senti perdido como nunca. O que eu teria a comemorar aos 30 anos? Meu fracasso pessoal? Ter jogado fora os sonhos daquele menino de 20 anos e tomado outros rumos na vida? Comemorar uma cabeça que me trai sempre que encontra a oportunidade? Perder a capacidade de interagir com outras pessoas e não conseguir sair de um quarto?

Eu sei que nada disso faz sentido e eu estou muito longe de ser fracassado. Hoje. Naqueles dias, não. Acreditamos em cada besteira né. Tem gente que acredita que a Terra é plana e que a vacina implementa chip, já eu acredito que sou um lixo humano quando não estou com a cabeça no lugar.

Se não fosse os acontecimentos do último ano, talvez eu pudesse estar ocupando a mente preocupado em como é estar prestes a se tornar uma maricona envelhecendo num mundo de famílias e relacionamentos que não me representam e que mesmo que eu quisesse constituir uma nem teria como, já que nem a etapa de namorar me dei ao luxo de fomentar, falei tanto que tava aberto a me apaixonar e nunca mais me apaixonei, talvez porque eu estivesse ocupado demais tentando conseguir uma vida digna e independente correndo atrás de metas e objetivos que me devolveram depressão e ansiedade, ou quem me deu isso foi justamente crescer nesse mundo sem referência alguma sobre o que fazer depois dos 30 sendo a gay desquitada e desequilibrada que ninguém queria para nenhuma criança viada dos anos 90. Mentira, eu sei que tem uma pitada gigante de genética e desestruturamento precoce para além da sociedade ferrada, provavelmente a raiz dos problemas, contudo, infelizmente ou não, não tô podendo ocupar o tempo pensando tanto assim a respeito da minha identidade em sociedade, pois tem problemas maiores e emergentes, que poderiam ser desnecessários se tivessem sido resolvido antes, mas não vamos apontar o dedo pra ninguém, quem sabe quando tiver garantia de que alguns deles estão para sempre solucionados já terei chegado aos 40 anos e nem que eu queira arranjar um namorado, ou dois namorados, ou um filho, ou uma nova obra de arte para me sentir medíocre, expor minha mediocridade e ser aplaudido por ser mais um medíocre numa terra de medíocres aplaudidos, já será tarde para fazer a diferença, ao menos a diferença nos meus trinta anos, pois esses, assim como os vinte, já se passaram.

Por mais que os pensamentos me bombardeassem querendo que eu comparasse o que é chegar aos 30 desolado e doente, sem a menor força para passar por cima dos problemas, com o garoto que chegava aos 20 com sangue nos olhos e a faca nos dentes, preparado para encarar qualquer coisa depois do que já tinha passado, eu precisava lembrar que alguma parte da determinação e coragem daquele garoto ainda residia em mim, ainda reside em mim, e mesmo que tudo desse errado, eu poderia recomeçar.

Tenho 3 comprovantes de residência, moro no litoral do Rio de Janeiro, moro na capital e no interior de São Paulo, moro não faço ideia de onde, não pertenço a lugar algum. Gostaria de dizer que pertenço a todos, mas mesmo medicado continuo é com asco da maioria dos lugares e das pessoas. Devia ter viajado o mundo caronando quando tive a vontade na primeira vez porque agora só de pensar em atravessar um mundo repleto de gente imbecil já sinto preguiça e me atraio mais pelo conforto de estar acomodado. Se bem que, lá atrás, a ideia era viajar para descobrir se existiam pessoas que valiam a pena, já que eu não confiava nelas. Vai ver eu preciso disso para voltar a confiar em mim.

Não faço planos porque o mundo está uma desgraça, a política brasileira não ajuda a olhar a longo prazo e preciso manter um monstro aterrorizante afastado da porta do meu apartamento. Então dou um passo de cada vez, vivo um dia de cada vez. Hoje eu estou em São Paulo, amanhã em Conchas, depois Botucatu e então Arraial do Cabo outra vez. Sei que hoje me debruço sobre esse texto de sentimentos atropelados pois comecei a escrever tardiamente sobre o que estava entalado. Se o tivesse feito antes, talvez a melancolia fosse maior e alguém que me lesse procurasse desesperadamente garantir que eu estivesse bem, mas como eu passei por 3 meses de recuperação e desde que trintei sei que tenho uma vida cheia de surpresas pela frente, escrevo para lembrar que os problemas não param e eu não posso parar.

É como se eu estivesse recomeçando. Mais uma vez.