Meu processo de cura com a consagração da Jurema e o Ayahuasca

Depressão, ansiedade e as medicinas sagradas

A busca pelo alívio da depressão é algo que sempre me instigou nesses mais de 20 anos que convivo com ela. De forma ingênua e perigosa na infância. Através do comportamento autodestrutivo e inconsequente na adolescência. Obcecado e determinado quando adulto, equilibrando a racionalidade científica e manifestações artísticas com os resquícios da fase anterior.

Escutar dos profissionais de saúde que tenho que aceitar tomar remédios para o resto da vida para manter a qualidade de vida sempre me causa ojeriza. Não parece certo. E eu odeio o quanto remédios afetam minha relação com o álcool e minha vida sexual. Além do incômodo de pensar que todos os remédios são paliativos, nenhum deles resolve o problema de verdade e absolutamente ninguém consegue entender de verdade como funcionam os transtornos mentais e qual é exatamente a atuação dos remédios no tratamento. Inclusive, já questionam o papel da serotonina na causa da depressão.

Esse ano começou treta. Logo na virada do ano tive uma crise de ansiedade e passei 4 horas escondido num cômodo. A ansiedade vinha me rodeando há um mês, mas eu estava confiante de conseguir tê-la sob controle voltando a fazer terapia — que eu não conseguia marcar por uma série de dificuldades com meu plano de saúde da Unimed. Então o Pirata sumiu e a depressão veio. E por mais difícil que seja a ansiedade, é a depressão quem tira a esperança. Não é possível viver sem esperança. Por mais que eu entendesse estar doente, que eram as mesmas mentiras de sempre no meu cérebro, não conseguir levantar da cama ou tomar um banho não são resolvidos com a compreensão do que está acontecendo durante os períodos de lucidez. Não me via com outra escolha se não voltar a me automedicar, já que estava sem suporte profissional e a situação era urgente.

Então, estava olhando o status do WhatsApp (pois é assim que vivem as pessoas que não tem Instagram) e vi a minha amiga Amália divulgando um ritual de juremasca conduzido pelo índio Funi-ô Tuwe.

Juremasca é a união de duas medicinas sagradas, a Jurema, chá feito a partir da infusão das cascas dos troncos e raízes da árvore Jurema Preta encontrada no Nordeste, e o já conhecido Ayahuasca, feito a partir do cipó e folhas chacronas do Amazonas.

É isso, faz total sentido! Antes de voltar para os remédios, precisava aproveitar para consagrar a medicina e fazer o mesmo pedido que fiz da última vez: “por favor, me cura da depressão".


O ritual

Peguei o ônibus para Botucatu, minha terra natal, e uma carona para o Spa Roots. Um sítio maravilhoso perto da cachoeira Indiana onde aconteceria o ritual. Seguimos em 6, eu e o casal que me deu carona, minha amiga Amália e sua companheira Maia como guardiãs e Tuwe, indígena Funi-ô, como condutor.

Conversei com Tuwe a respeito da mediunidade. Meu corpo sempre fica entregue e sei de grupos que bloqueiam. Não era o caso. Disse para eu deixar acontecer o que o corpo quisesse e combinamos o que fazer se eu não me sentisse seguro.

Uma curiosidade é que sentei por último e fiquei de frente com a fogueira, no lado leste para o qual ela apontava. Amália leu que cada um dos lados da fogueira trabalha com um chakra, e o meu lado trabalhava com o da clareza mental. Justamente o que eu buscava.

Começamos o ritual com uma primeira dose de ayahuasca. Um tempo depois uma dose de Jurema, nunca havia tomado até então, e depois outra dose de ayahuasca.

Havia uma energia dos animais nos rodeando, com cavalos em nosso entorno, além de gatinhos e o cachorrinho Miguel, todos filhotes. Especialmente o Miguel seria importante para mim, mas eu ainda não sabia. Sentado olhando para a fogueira, eu mentalizava a cura da depressão e pensava no Pirata. Queria ter alguma luz em relação ao que sentia. Será que eu conseguiria entender o que aconteceu com ele? Se ele estava bem ou se precisava de ajuda e o que eu poderia fazer? Nunca sabemos o que esperar, que tipo de sabedoria conseguimos com a medicina, por isso eu não descartava nenhuma possibilidade.

Como esperado, não consegui ficar parado. Deitar e permanecer imóvel não é viável para quem sente a manifestação da medicina através do movimento do corpo. Amália disse para eu ficar a vontade para levantar e dançar pelo espaço. Levantei, e continuei de um lado para o outro. Estava na força, mas não era bem dançar que eu queria, não sei o que meu corpo queria. Tentava entender a Jurema, pensando em como ela diferia do ayahuasca. Não sei se entendi.

Meu processo de cura

Certo momento meu corpo cedeu. Queria apenas deitar e se acomodar perto da fogueira. Nem me dei ao trabalho de me cobrir com a coberta dobrada aos pés. Fiquei ali em posição fetal, olhos fechados, sentindo a força. Maia veio até mim e me cobriu com seu próprio manto. Fiquei mais confortável e ali permaneci, deitado no chão confortavelmente.

Foi quando meu processo de cura começou. Algo tentava se expressar através de mim e me concentrei nisso. Era como se uma fera estivesse triste e gemendo. Através da minha boca dava para escutar seus grunhidos e gemidos. Meus braços e mãos cobriam meu rosto em movimentos confusos. Continuei coberto e deitado, deixando meu corpo se manifestar dessa maneira.

Maia percebeu, colocou sua cabeça próxima da minha e me fez carinho. Me deu atenção, cuidou de mim e desse espírito. O que é que fosse se sentiu acolhido e colocou sua dor para fora. Se antes já parecia estar sofrendo, agora era dilacerante, uma dor engasgada. Todo o sofrimento dessa fera foi colocado para fora através de mim. Gritava e emitia os sons dela. E assim foi por não sei quanto tempo, sentir essa atribulação crescendo e crescendo e a fera chorando e chorando.

Essa foi uma experiência muito menos visual do que as outras que tive. Porém, muito mais sensível. Os olhos fechados não me faziam enxergar a força, mas ajudava a concentrar no padecimento dessa fera que meu corpo acessava. Meus ruídos abafados pela chuva incessante chamariam atenção de qualquer pessoa. Gritava, grunhia e roncava. Contudo, Maia e Amália cuidavam de mim. Sentia o carinho e o toque de suas mãos me acalentando, às vezes mãos além das delas.

Determinado momento abri os olhos e enxerguei Maia rodeada pela força. Ela fazia um rezo que eu não escutava, mas sentia. Posteriormente, Amália disse parecer que ela falava uma língua alienígena. Maia mesma não faz ideia do que falava naquele momento. Elas levantaram meu corpo para se sentar. As pernas da Amália me abraçavam pelas costas. Uma mão me deu uma pedra branca retangular para segurar. Outra me dava um copo com água para hidratar. Todo o sofrimento foi substituído pela limpeza. Acredito ter vomitado em uns 5 baldes que elas trocavam conforme vinham para evitar que eu fizesse a sujeira toda que acabei fazendo mesmo assim. Sofrimento, choro e vômito.

Nada parecia diminuir o sofrimento que eu sentia e colocava para fora. Até que Maia colocou Miguel no meu colo. E olhar para ele ali, sentir seu pêlo e perceber todo amor que emanava daquele cachorrinho, fez com que eu mergulhasse em um novo sentimento. Me debrucei sobre o joelho e chorei. Um choro diferente do qual a fera chorava, um choro meu e não dela. Meu próprio corpo chorava como se tivesse engasgado precisando. Nunca havia chorado como naquele momento. Segurei Miguel e chorei muito. E tal qual como quando estou num pico de depressão e sinto que mereço a dor e o sofrimento, sentia que eu precisava continuar preso a esse choro e a esse novo sofrimento que não era mais do espírito de antes. Era meu. O espírito continuava ali comigo. Estávamos juntos sofrendo.

Maia perguntou minha cor favorita e buscou uma vela verde azul e uma preta. Era para me aterrar e lembrar que eu estava no controle. Com ajuda engatinhei até a fogueira e acendi as velas. Finalmente a fera começou a ceder, seu sofrimento a diminuir e seu choro a se tornar um choramingo com pequenos espasmos, cada vez menores enquanto eu voltava em posição fetal quase abraçado a fogueira. Miguel deitado comigo, brincando com minhas mãos de forma que eu nem percebi qual foi o exato momento que deixei de estar conectado ao espírito que estava antes.


Meu contato com ayahuasca e a escolha pela ciência

A primeira vez que ouvi falar de Ayahuasca foi igual a todo jovem delinquente: mais uma possibilidade de me drogar. Mas o contato em si veio muitos anos depois, em 2017, quando eu já sabia que não se tratava de uma droga — e a curiosidade e receio andavam de mãos dadas. Foi a experiência mais assustadora e diferente de absolutamente tudo que eu conhecia. Tive muito o que pensar e acreditei que ali tinha algo novo a ser explorado. E o novo é aterrorizante, ninguém gosta de acordar e perceber as mentiras que acreditam, no mínimo não é fácil. Foi com essa experiência que eu passei a acreditar em um plano extrafísico e espiritual. O ayahuasca se tornou a minha única referência plausível do transcendental que nenhuma religião chegou perto de conseguir me “mostrar”.

Meu ateísmo, ceticismo e apreço pelos métodos científicos me impediram de voltar a ter contato com a medicina da natureza, pois fui diagnosticado com distimia, o que hoje chamam de transtorno depressivo persistente. Me diziam que eu não poderia em hipótese alguma ter contato com as plantas enteógenas porque corria o risco de agravar minha saúde mental. Fora o perigo para pessoas com tendências esquizofrênicas, o que eu não descarto a possibilidade de fazer parte — nem sequer fumo maconha devido às paranoias. Escolhi o caminho científico, o dos remédios, e não voltei a consagrar ayahuasca por 4 anos.

Em fevereiro de 2021 consagrei novamente com um grupo que não havia tomado antes. Foi um ritual bem free-style. Estava sem tomar remédio há quase um ano como decorrência de ter ficado "preso" na praia quando começou a pandemia. Naquele dia eu mentalizava "vai galera, meu corpo é de vocês, faz o que quiserem. Mas por favor, me curem da depressão e do cigarro, me curem da depressão e do cigarro… ". Infelizmente, o ritual foi abruptamente interrompido quando eu estava no ápice da força, mas fui curado do meu vício de 15 anos.

Esse mesmo ano foi um pesadelo. Por uma série de acontecimentos trágicos acabei desenvolvendo uma síndrome do pânico que não me permitia ter interações sociais tranquilamente. Cogitei me internar num hospital psiquiátrico. Na época eu escondia uma pessoa foragida, um conhecido foi brutalmente assassinado por homofobia, fui ameaçado de morte, processado e perigava ver meu negócio ruir com a segunda onda do covid, fora a ansiedade de viver uma pandemia sem vacina em um governo genocida. Não voltei a consagrar e por vezes pensava inutilmente se a planta não tinha alguma relação com meu estado mental.

Passei uma temporada no interior de São Paulo e soube que Amália vinha consagrando o ayahuasca em Botucatu. Minha vontade de participar era enorme, de ter uma luz sobre o que acontecia comigo, de conseguir uma ajuda que parecia tão distante, de ter esperança. Mas o medo era maior, ainda mais quando eu vivia apenas esperando pela próxima crise de ansiedade. Novamente escutei os psiquiatras, e enquanto me medicava procurei por todas as pesquisas sobre o uso de ayahuasca e cogumelos no tratamento de depressão e ansiedade. Era uma tristeza entender quão pouco sabemos e eu não podia me dar ao luxo de esperar o avanço lento da ciência nesse território. Não voltei a estudar a medicina sagrada e recuperei um pouco da estabilidade do humor novamente com os remédios.


Enfim, a espiritualidade

Toda vez que eu me lembro ou começo a contar a história do meu processo de cura nessa última consagração, me emociono e lágrimas vem aos meus olhos. Por maior o sofrimento e dor envolvido nesse processo, algo lindo aconteceu ali. Foi uma experiência linda, a mais linda que vivi com a medicina. Só possível pelo cuidado das duas, Amália e Maia. Não faço ideia como teria sido essa experiência se elas não estivessem comigo, me dando tanto amor, cuidado e carinho. Sinto muita gratidão por elas.

Quando acalmei e Amália pediu permissão para Tuwe encerrar o ritual, dividimos nossas experiências. Ela agradeceu e expôs a confiança que sentia pós essa vivência e se dirigiu a mim para abordar minha identidade como ateu desde que nos conhecemos, minha depressão e uso dos medicamentos.

Por mais bizarro que possa parecer um ateu que consagra ayahuasca e fala de espíritos, continuo não acreditando em um deus. Nada disso para mim é evidência alguma de que “Deus” exista e não acho válido chamar de deus conceitos tão abstratos e genéricos como energia, entidades e a força da natureza vivendo em uma sociedade cristã. Me posicionar como ateu é também uma atitude política frente ao que os cristãos pregam.

Contudo, sinto que preciso cuidar do meu lado espiritual. Algo que não sinto desde que era cristão e explorava as religiões a fim de me encontrar. Não é através de um deus que cuidarei da minha espiritualidade e não quero fazer isso somente com consagrações extra-sensoriais. Ainda não sei como isso vai funcionar, mas posso entrar numa nova fase de exploração.

Como expus em volta da fogueira sobre como minha experiência, acho que tinha comigo um espírito que estava sofrendo muito. Aparentemente ele nunca tinha sido cuidado, mas ali ele foi. Eu, Eliel, continuarei carregando meus transtornos, não me sinto livre de vez disso, e algum momento futuro terei que lidar com a depressão mais uma vez. Porém me sinto grato que pude ser o canal desse espírito se expressar e permitir que ele liberasse a dor que sentia.

Talvez a ciência nunca consiga entender como funciona os transtornos mentais. Talvez os transtornos sejam reflexos de uma dor em outro plano que não temos fácil acesso. Talvez a minha depressão seja uma manifestação de algo de outro plano que encontra em mim um meio. Duvido que um dia entenderei.

Refletir sobre meu transtorno mental relacionado a um plano espiritual, me leva a pensar em 2 alternativas:

  1. O sofrimento que vivi era de outro espírito. E assim como ele encontrou em mim uma forma de se expressar, outros virão. Ele nem mesmo foi o primeiro. Infelizmente os evangélicos não me prepararam para lidar com isso quando eu era atormentado na infância e por mais que eu tenha evitado até as religiões que falam diretamente dos espíritos, isso não muda como o meu corpo e mente são afetados pelo que desconheço. Se eu entender um pouco dessa relação, posso vir a sofrer menos e ajudar mais esses caras que me acham tão atraente.
  2. O sofrimento que vivi era do meu próprio espírito. E eu não estava cuidando dele como ele precisava ser cuidado. Essa alternativa é mais assustadora do que a primeira, pois além de eu não ter muita experiência cuidando da espiritualidade (desconsiderando minha vivência na igreja evangélica), não acredito na maior parte das crenças de quaisquer religiões, cristã ou não. Cuidar do meu próprio espírito parece um caminho de entender novos significados, um caminho árduo que eu preferia evitar.

Para ambos os casos, os remédios tradicionais apenas maquiariam o problema, jamais o resolveria. Se meus transtornos são reflexos de uma força espiritual que não tenho controle e nem compreensão, no mínimo poderei evitar sofrimentos desnecessários se adquirir o conhecimento certo.


Hoje me sinto livre do episódio depressivo que me encontrava. Não recebi nenhuma iluminação sobre o Pirata, mas não carrego mais aquela culpa enterrada em meu peito.

Ayahuasca mais uma vez me mostrou seu poder de cura. Por mais que eu continue cético sobre muitas questões, que eu continue me considerando ateu, que eu não acredite em quase nada do que pregam tanto os religiosos quanto as comunidades que consagram ayahuasca, tenho um profundo e enorme respeito a essa medicina sagrada. E me sinto grato por ela.


PS: Depois disso tudo, a Unimed entrou em contato e resolveu meu problema com o plano. Inclusive, foram tão adiantados que agendaram psicólogo presencial pra mim mesmo eu nem morando na cidade e tendo como ir. Tenho a impressão que a ajuda só veio pois abri uma reclamação no órgão que regula os planos de saúde, a ANS.