Fica o aviso: Disclaimer é uma obra exagerada, moralista e pretensiosa
Coloquei “Disclaimer” (Apple TV) para assistir por motivos de Cate Blanchett e Alfonso Cuarón. Esperava lindos e longos planos sequências recheados de boas atuações, mas recebi uma obra moralista e pretensiosa, com um roteiro exagerado que me deu preguiça.
A série é um thriller psicológico cuja trama baseada no romance homônimo de Renée Knight explora temas como reputação e cultura do cancelamento. A história gira em torno de Catherine Ravenscroft (interpretada por Blanchett), uma renomada jornalista que tem sua vida virada de cabeça para baixo quando recebe um romance que a coloca como protagonista, revelando um segredo sombrio que ameaça destruir sua vida pessoal e profissional, incluindo seu relacionamento com o filho e o marido, Robert (Sacha Baron Cohen).
Catherine age de maneira passiva, contradizendo seus pensamentos narrados em off e sua postura familiar e profissional de alguém forte. Ao menos, é a personagem menos exagerada da história. Todos os outros, absolutamente todos, são exagerados, estereotipados e maniqueístas. Ninguém parece refletir sobre nada. Sinto-me ofendido pela forma como os jornalistas foram retratados, e nem sou jornalista.
Mesmo os figurantes são exagerados, o que me fez xingar alto e desacreditar que Cuarón dirigiu isso na cena da praia do quarto episódio. Não existe a menor sutileza em suas ações.
A série é didática e ilustrativa — a ponto de uma conversa online, em que um personagem manipula outro, ditar o que o outro precisa pensar e o espectador precisa saber o que ele está pensando. Não há espaço para entrelinhas.
Até a cor é exagerada. Elas vão do quente para o frio como se houvesse uma transição de verão para inverno em segundos. O que me leva crer ser mais um artifício esdrúxulo para garantir que o espectador compreenda o que está se passando com as personagens. Mas, afinal, o público esperado era tão burro assim que não sobrou sutileza nem mesmo para a direção de arte?
Porém, nada disso me incomodou tanto quanto o fator moralista da série, que perpetua a ideia de que não podemos conceber uma mulher honrosa, forte, profissional e mãe de família que não tenha seus próprios desejos.
ATENÇÃO AOS SPOILERS ABAIXO.
Apesar de acompanharmos o que acontece com a protagonista feminina, Catherine, a narrativa é de uma perspectiva masculina. É sobre como o homem enxerga a mulher, o filho enxerga a mãe. Como a mulher não pode sair do seu papel estabelecido pelo homem, ou será escorraçada. E somente um evento extremo como o estupro pode absolvê-la, fora isso, ela não deve ter suas próprias vontades.
As duas personagens femininas são definidas por seus papéis como mães, elas não têm suas próprias vontades, além de serem objetos masculinos.
O tom moralista é marcado principalmente pelas cenas sexuais. Primeiro, utilizada numa tentativa de te fazer sentir nojo pela mulher (como assim uma mãe de família traindo o marido durante uma viagem após seduzir um jovem enquanto o filho dorme ao lado? Puta!), e depois utilizada para trazer redenção. Quanto mais violência a mulher sofrer na mão do estuprador, maior será sua redenção e assim perderá o estigma de puta. Para finalmente podermos olhar para ela novamente como a mulher honrosa, forte, profissional e mãe de família que ela é — mas ai dela se sentir desejo ou fazer qualquer outra coisa que não seja suprir a demanda dos homens à sua volta.
Há ideias moralistas também nos arcos secundários, retratando as drogas de forma paranoica e estereotipada — fazendo a festa dos cidadãos de bem.
Após a fatídica cena em que dizem “You’re so cancelled…”, que soa como um dedo apontado na direção do espectador, gozando da nossa cara, não me restou nada além de desejar que todos os envolvidos com isso sejam, de fato, cancelados.
No Órbita, houve uma discussão sobre o filme em que Ghedin viu esse mesmo desenrolar mais como uma crítica do que uma perpetuação da ideia acerca do papel da mulher, e Gabriel teve maior apreço pela parte técnica.
Posteriormente, sol2070 somou a perspectiva de Ghedin, apontou a sutileza existente no fim da série e ao truque narrativo que a coloca num lugar de crítica exatamente contra a visão que eu notei.
O truque consiste em manipular deliberadamente o espectador para se identificar com alguns personagens e acreditar em uma versão falsa da história, mesmo com sinais claros de sua não confiabilidade. Artifício usado para criar uma crítica sobre a ausência de senso crítico, fazendo o próprio público experimentar isso ao longo da história, para então questioná-lo com um "Não é estranho você ter acreditado?". O truque narrativo é colocar quem assiste no lugar do machista. É dizer que o público que se sente tranquilizado no final é machista.
Sol2070:
Meu único porém é que histórias que dependem de um truque narrativo indicam que a história em si é fraca, mas nesse caso o truque é inseparável da história.
Na verdade, curti seu comentário porque ele me fez ver, involuntariamente (he he, desculpe), que a série é melhor do que eu achava.
O truque narrativo é interessante. Pra mim, é ele que faz a história se diferenciar. Manipula quem assiste, faz a gente se identificar com o pai do menino, com o marido etc. E, no final, aponta o dedo dizendo: “Não é estranho você ter acreditado?”.
Não acho que seja só aí no final que tudo é esclarecido. Está o tempo todo lá, nos tons exagerados em quase todos os aspectos.
Parei de considerar realidade o que estava sendo narrado quando apareceu o livro, me perguntando, “por que esses homens estão agindo como se o livro fosse real? A autora não estava lá, isso não pode ter acontecido”.
É uma história sobre ausência de senso crítico, que induz quem vê a cometer isso. Se não fosse essa manipulação, sobraria pouco ali.
Ghedin:
Não é um documentário, é uma ficção — e uma que explora muito bem as famigeradas “narrativas” para fazer a mesma crítica que você faz, só que por outro caminho menos óbvio, mais instigante.
O sol2070 lembrou a frase que a Catherine diz ao Robert (marido): “Achou melhor ela ser estuprada do que ser feliz.” É muito potente e, acho eu, é uma frase dirigida ao público também, público que talvez estivesse julgando a Catherine sem se atentar (ou se importar) que o que estava sendo exibido era a narrativa da mãe do Jonathan. Essa reviravolta brincando com a percepção do público foi muito bem amarrada e executada, acho eu.
Deus do céu, tô sendo um chato do caralho. Provavelmente por estar colocando o senso de justiça acima da proposta narrativa da série, como o Ghedin bem pontuou. O que não é necessariamente ruim? Afinal, são partes dos meus valores e fundamental para o meu senso crítico em relação a qualquer mídia que eu consumo.
Saquei o ponto deles. E ficou evidente o lugar específico de onde difere nossa percepção entre gostar e não gostar.
Apesar do truque narrativo (que considero fraco e fácil), não me identifiquei com o pai do menino, não me identifiquei com o marido, não me identifiquei com o filho. Pelo contrário, custei a acreditar que alguém acharia justificável as atitudes deles MESMO que Catherine fosse exatamente o que o livro pintava sobre ela. Ela poderia ser aquilo tudo que o pai do menino achasse e muito mais, ela poderia ter seduzido e deixado morrer mais 20 garotos, nada justificaria a reação do marido e dos jornalistas.
Ler o quanto isso funcionou para eles, pessoas esclarecidas, que escrevem bem, chega a me preocupar enquanto alguém que sente repulsa pela sociedade machista e patriarcal. O que reforça minha ideia de que é uma obra que perpetua o moralismo, e não o critica. (Não quis ofendê-los e nem parecer arrogante, mas não encontrei outro jeito de expressar o que sinto)
Se é esse truque narrativo e ser uma história sobre ausência de senso crítico que tornam essa obra relevante, então temos o espectador como cúmplice, mais do que ter o dedo apontado para ele.
A obra não o leva a refletir o quanto ele é machista, o quanto ele sentiu repulsa pela mulher por causa de ideias machistas, o quanto ele foi manipulado por ser machista, o quanto ele só a absolveu por causa de ideias machistas. A obra ensina a absolver a mulher num caso extremo de violação como o estupro, algo que só machuca no homem por ele enxergar a mulher como seu próprio objeto.
E se ela realmente tivesse seduzido o garoto?
E se ela nunca tivesse sido estuprada?
E aí?
A história da sedução era mentira, o estupro era verdade, e o espectador só a absolve após isso, após esse truque narrativo. Após uma puta que merecia o pior ter sido esclarecida como mãe de família e vitimizada com violência extrema.
A puta continua merecendo o pior. O espectador não teve senso crítico, e vai continuar sem ter.
Assim como o sol2070 passou a considerar a série melhor do que achava após meu comentário, eu também passei a valoriza-la mais após a discussão e entender como eles pensam.
Quantas outras discussões foram levantadas? Qual será o perfil das pessoas que a discutem? Será que os homens realmente se enxergam machistas no fim de tudo?
Apesar de achar a qualidade da série ruim, como obra de arte ela não apenas reflete seu tempo, mas também provoca discussões ativas sobre o mundo contemporâneo, parecendo assim fazer seu trabalho.
Como o sol2070 concluiu por email: “Tudo bem a gente perceber as coisas de forma diferente. Não precisa se preocupar com isso, não. 😉”